quarta-feira, 8 de julho de 2020

O Substituto. Philippa Gregory. «Enquanto ela se sentava, os dois homens entraram juntos. Quero lhe falar sobre o testamento de nosso pai, disse Giorgio, depois que todos estavam acomodados»

Cortesia de wikipedia e jdact

O Castelo de Lucretili. Junho de 1453
«(…) Lágrimas a surpreenderam, borrando a visão dos servos que entravam, traziam mais comida para as mesas, serviam jarros de cerveja e levavam os melhores pratos e o melhor vinho tinto para a mesa principal, enquanto Giorgio e seu convidado, o príncipe, escolhiam primeiro e mandavam o resto para os homens que os serviram tão bem durante o dia. O príncipe e seu irmão comeram bem e pediram mais vinho. Isolde beliscava a comida e encarava a mesa das mulheres, onde o olhar de Ishraq encontrava o seu em muda solidariedade. Quando terminaram, e as frutas cristalizadas e o marzipã já haviam sido servidos na mesa principal e levados embora, Giorgio tocou na sua mão. Não vá para seus aposentos ainda. Quero falar convosco. Isolde acenou com a cabeça para dispensar Ishraq e as damas do jantar e mandá-las de volta aos aposentos das mulheres. Então entrou pela pequena porta atrás do tablado, para a sala privativa onde a família Lucretili ficava depois do jantar. Um fogo ardia contra a parede, e havia três poltronas voltadas para perto dele. Um jarro de vinho fora preparado para os homens, e um copo de cerveja, para Isolde.
Enquanto ela se sentava, os dois homens entraram juntos. Quero lhe falar sobre o testamento de nosso pai, disse Giorgio, depois que todos estavam acomodados. Isolde olhou o príncipe Roberto. Roberto tem relação com isto, explicou Giorgio. Quando o pai estava moribundo, disse que a sua maior esperança era saber que você estaria segura e feliz. Ele a amava muito. Isolde apertou os lábios frios com os dedos e piscou para conter as lágrimas. Eu sei, disse o irmão, com gentileza. Sei que está de luto. Mas precisa entender que o pai fez planos para e me deu o dever sagrado de colocá-los em prática. Porque ele mesmo não me disse?, perguntou ela. Porque não falou comigo? Sempre conversámos sobre tudo. Sei o que planeava para mim: ele disse que se decidisse não me casar, moraria aqui, herdaria este castelo e você teria o castelo e as terras na França. Nós concordámos com isto. Todos os três concordámos.
Concordámos quando ele estava bem, respondeu Giorgio, paciente. Mas quando ficou doente e temeroso, mudou de ideia. E não suportava que o visse tão enfermo e com tanta dor. Quando pensou em você naquela hora, com a boca da morte escancarando-se diante dele, reflectiu melhor sobre o plano inicial. Queria ter certeza de que ficaria em segurança. E planeou bem, sugeriu que se casasse com o príncipe Roberto. Concordámos que deveríamos retirar mil coroas do tesouro como dote.
Era um pagamento ínfimo para uma mulher que fora criada para se considerar herdeira daquele castelo, dos pastos férteis, dos bosques densos e das altas montanhas. Isolde ficou boquiaberta. Porque tão pouco? Porque o príncipe nos honrou ao insinuar que a aceitaria exactamente como é, sem nada além de mil coroas na bolsa. E poderá guardar tudo, garantiu-lhe o homem, apertando a mão que Isolde pousara no braço da cadeira. Terá o dinheiro para gastar no que quiser. Coisas lindas para uma linda princesa. Isolde fitou o irmão, apertando os olhos azul-escuros enquanto compreendia o significado daquilo tudo. Com um dote pequeno assim, ninguém mais fará propostas pela minha mão, concluiu. Você sabe disso e, mesmo assim, não pediu mais? Não avisou o pai que isto me deixaria sem nenhuma perspectiva? E o pai? Ele queria-me obrigar a casar com o príncipe? O príncipe pôs a mão no peito carnudo e baixou os olhos humildemente. A maioria das damas não precisaria ser obrigada, observou. Não sei que marido poderia ser melhor para você, respondeu Giorgio, com calma. O outro homem sorriu e assentiu para ela. E o pai também pensava desta forma. Combinamos este dote com o príncipe Roberto, e ele ficou tão satisfeito por se casar contigo que não pediu que levasse uma fortuna maior que esta. Não precisa acusar ninguém de não defender os seus interesses. O que poderia ser melhor para você que um casamento com um amigo da família, um príncipe e um homem rico? Foi preciso apenas um segundo para se decidir. Não consigo pensar em casamento, disse Isolde, categoricamente.
Perdoe-me, príncipe Roberto. Mas a morte de meu pai é muito recente. Não consigo nem mesmo pensar nisso, quanto mais falar no assunto. Precisamos falar no assunto, insistiu Giorgio. Segundo os termos do testamento de nosso pai, devemos ajeitar sua vida. Ele não permitiria nenhuma demora. Ou casa-se imediatamente com o meu amigo aqui ou... Ele hesitou. Ou o quê?, perguntou Isolde, subitamente temerosa. A abadia, respondeu ele, com simplicidade. O pai disse que, caso não se casasse, eu deveria nomeá-la abadessa e você viveria lá. Nunca!, exclamou Isolde. Meu pai jamais faria isso comigo! Giorgio assentiu. Também fiquei surpreso, mas ele disse que era o futuro que planeara para você o tempo todo. Que foi por isso que não preencheu o posto quando a última abadessa faleceu. Na época, já pensava, um ano atrás, que você precisaria ficar em segurança. Não pode ser exposta aos perigos do mundo, deixada sozinha aqui em Lucretili. Se não quiser casar-se, deverá ficar na segurança da abadia. O príncipe Roberto sorriu para ela, com malícia. Uma freira ou uma princesa, sugeriu. Imagino que seja uma decisão fácil de tomar». In Philippe Gregory, O Substituto, 2012, Editora Galera Record, Colecção Ordem da Escuridão, 2015, ISBN 978-850-140-319-3.

Cortesia de EGRecord/JDACT