sábado, 4 de julho de 2020

O Castelo. Franz Kafka. «O castelo do senhor conde Westwest. E é preciso ter permissão para pernoitar?, perguntou K. como se quisesse se convencer de que não tinha por acaso sonhado…»


Cortesia de wikipedia e jdact

Chegada
«Era tarde da noite quando K. chegou. A aldeia jazia na neve profunda. Da encosta não se via nada, névoa e escuridão a cercavam, nem mesmo o clarão mais fraco indicava o grande castelo. K. permaneceu longo tempo sobre a ponte de madeira que levava da estrada à aldeia e ergueu o olhar para o aparente vazio. Depois caminhou à procura de um lugar para passar a noite; no albergue as pessoas ainda estavam acordadas, o dono não tinha quarto para alugar mas, extremamente surpreso e perturbado com o hóspede retardatário, propôs deixá-lo dormir sobre um saco de palha na sala e K. concordou. Alguns camponeses ainda estavam sentados tomando cerveja mas ele não queria conversar com ninguém, pegou pessoalmente o saco de palha no sótão e deitou-se perto da estufa. Estava quente ali, os camponeses quietos, ele os examinou ainda um pouco com os olhos cansados e em seguida adormeceu.
Mas pouco tempo depois já foi despertado. Um jovem, em trajes de cidade, rosto de actor, olhos estreitos, sobrancelhas fortes, encontrava-se ao seu lado com o dono do albergue. Os camponeses também ainda estavam lá, alguns tinham voltado as suas cadeiras para ver e ouvir melhor. O jovem desculpou-se muito cortesmente por ter acordado K., apresentou-se como filho do castelão e depois disse: esta aldeia é propriedade do castelo, quem fica ou pernoita aqui de certa forma fica ou pernoita no castelo. Ninguém pode fazer isso sem permissão do conde. Mas o senhor não tem essa permissão, ou pelo menos não a apresentou. K. tinha erguido a metade do corpo, alisado os cabelos para trás com os dedos; olhou os dois de baixo para cima e disse: em que aldeia eu me perdi? Então existe um castelo aqui? Certamente, disse o jovem devagar, enquanto aqui e ali alguém balançava a cabeça em relação a K. O castelo do senhor conde Westwest. E é preciso ter permissão para pernoitar?, perguntou K. como se quisesse se convencer de que não tinha por acaso sonhado com as recentes informações. É preciso ter a permissão, foi a resposta e havia um desdém grosseiro por K. quando o jovem, com o braço esticado, perguntou ao dono do albergue e aos fregueses: ou será que não é preciso ter permissão? Então tenho de ir buscar uma permissão, disse K. bocejando e empurrou a coberta como se quisesse levantar-se. Sim, mas de quem?, perguntou o jovem. Do senhor conde, disse K. Não resta outra coisa a fazer.
Agora, à meia-noite, buscar a permissão do senhor conde?, exclamou o jovem e recuou um passo. Isso não é possível?, perguntou K. impassível. Por que então me acordou? Mas dessa vez o jovem ficou fora de si. Isso são maneiras de vagabundo!, bradou ele. Exijo respeito pela autoridade do conde. Eu o acordei para comunicar-lhe que o senhor deve abandonar imediatamente o condado. Chega de comédia, disse K. em voz ostensivamente baixa, deitou-se e puxou a coberta. O senhor está indo um pouco longe demais, jovem, e amanhã eu ainda volto a falar do seu comportamento. O dono do albergue e aqueles senhores são testemunhas, se é que preciso de testemunhas. Mas de resto deixe-me dizer-lhe que sou o agrimensor que o conde mandou chamar. Meus ajudantes chegam amanhã na carruagem com os aparelhos. Eu não quis perder a oportunidade de fazer uma caminhada pela neve, mas infelizmente me desviei algumas vezes do caminho e por isso cheguei tão tarde. Eu sabia por conta própria, ainda antes que o senhor me ensinasse, que era tarde demais para me apresentar agora no castelo. Por isso também me contentei com este pouso, nocturno que o senhor, dito com suavidade, teve a indelicadeza de perturbar. Com isso estão encerradas minhas explicações. Boa noite, senhores. E K. voltou-se para o lado da estufa. Agrimensor?, ouviu ainda perguntarem com hesitação às suas costas, depois o silêncio foi geral.
Mas o jovem recompôs-se logo e disse ao dono do albergue num tom suficientemente abafado para soar como consideração pelo sono de K. e alto o suficiente para ser entendido por ele: vou pedir informações pelo telefone. Como, havia também um telefone neste albergue de aldeia? Estavam providos de excelentes instalações. Surpreendido no caso particular, no geral K. certamente o esperava. Evidenciou-se que o telefone estava colocado quase sobre sua cabeça, na sua sonolência ele não o tinha visto. Se o jovem precisava telefonar, então não podia nem com a melhor das boas vontades poupar o sono de K.; tratava-se apenas de saber se K. o deixaria telefonar e ele decidiu que sim. Mas também não tinha sentido algum fazer o papel de quem dormia e por isso ele voltou a ficar deitado de costas». In Franz Kafka, O Castelo, 1922 1926, Livros do Brasil, 2014, ISBN 978-989-711-028-3.

Cortesia de LdoBrasil/JDACT