terça-feira, 28 de julho de 2020

Ciência e Experiência nos Descobrimentos Portugueses. Luís Albuquerque. «Como consequência dele, os périplos da Antiguidade, já então chamados portulanos, passaram a acrescentar às distâncias que separavam dois portos o rumo (magnético) que o piloto…»

Cortesia de wikipedia e jdact

Antecedentes da Náutica dos Descobrimentos
A Náutica Medieval
«Desde a Antiguidade que os homens do mar, responsáveis pelo êxito das navegações, criaram o hábito de registar por escrito as indicações consideradas importantes para assegurar o êxito da viagem, caso viessem a repeti-la. Fazendo uma navegação quanto possível costeira, esses primitivos apontamentos dos pilotos e navegadores, não obstante o seu grande interesse histórico, fornecem um pequeno número de dados. Lendo, por exemplo, o Périplo do Mar Eriteu, redigido em grego por autor desconhecido antes de iniciada a nossa era, verifica-se que esse texto aponta o nome dos principais portos do Mar Vermelho, indicando quase sempre a distância (em estádios) que separa entre si dois ancoradouros consecutivos, e ainda algumas breves informações sobre os habitantes (ictiofágios e agriofágios, por exemplo) que viviam nas terras circunvizinhas desses lugares marítimos. Mas os esclarecimentos prestados são, na maioria dos casos, sucintos e imprecisos; é certo que, excepcionalmente, podem descer a alguns pormenores de interesse, mas nunca apontam o rumo pelo qual o navio devia ser encaminhado, como na Idade Média se leria nos textos análogos; tal falta é apenas significativa de que a navegação não se fazia nesse tempo por rumos geográficos ou magnéticos; o piloto impunha à sua embarcação, como já ficou dito, uma derrota à vista de costa, e isso dispensava qualquer tipo de orientação geográfica, que se tornaria mais tarde indispensável, quando tais condições se alteraram. Há testemunhos suficientes, embora de diversas origens, de terem existido vários textos deste tipo; eles constituem os mais antigos livros de náutica de que temos conhecimento, sendo de salientar que não há naqueles que nos chegaram em fragmentos ou integralmente outros dados suplementares que pudessem auxiliar o piloto na sua tarefa. Para citar um exemplo, direi que nenhum desses textos alude a qualquer determinação de latitude, que aliás seria absolutamente inútil para a arte de navegar a que se recorria; é certo que se tem sustentado ter Pytheas de Marselha medido esta coordenada geográfica umas quatro vezes nas suas deambulações oceânicas, que o teriam levado até a ilha de Tule, às costas da Noruega e ao Báltico; Laguarda Trias estudou-as cuidadosamente, mas a verdade é que tais pretendidas observações foram todas feitas em terra e em lugares desconhecidos (apenas de uma delas se sabe que teve lugar em Marselha); o seu interesse para a náutica é, por conseguinte, nulo ou muito longínquo. As navegações mediterrânicas da Idade Média, seriam bastante mais exigentes à medida que se intensificaram, e sobretudo depois que os pilotos começaram a utilizar a agulha marear; este acontecimento de que se não sabe exactamente a história, verificou-se, o mais tardar, no decorrer do século XIII (embora existam em autores europeus referências às propriedades da agulha magnetizada anteriores a essa data). Como consequência dele, os périplos da Antiguidade, já então chamados portulanos, passaram a acrescentar às distâncias que separavam dois portos o rumo (magnético) que o piloto devia adoptar para se dirigir de um a outro.
Dois outros aperfeiçoamentos da náutica aparecem também antes do século XV: a carta de navegar (a que modernamente se deu o nome de carta-portulano, por estar intimamente relacionada com os textos náuticos designados por portulanos) e a toleta ou raxon de marteloio. Quanto à carta, e a despeito de muitas especulações que em torno do seu traçado têm sido feitas, continuo persuadido que ela de facto surgiu exclusivamente como desejo de dar expressão gráfica aos portulanos; quer dizer que, em minha opinião, não seguiu qualquer sistema de representação matemática, como muitos historiadores pretenderam, por vezes relacionando-a sobre o muito falado sistema de projecção de Marino de Tiro, de que não há notícias satisfatórias; um estudo atento das cartas deste tipo mostra, com efeito, que nelas se utilizaram os elementos que estavam escritos nos portulanos, e que foram transpostos para o desenho tal como hoje ainda se faz um levantamento topográfico expedito, para representação de áreas restritas; é claro que, dada a extensão das áreas representadas na carta portulano, ela apresentava-se geograficamente errada; mas cortada de linhas de rumos magnéticos (inicialmente em números de dezasseis, que foi dentro de pouco tempo duplicado), ou seja, exactamente os rumos seguidos pelos pilotos, adaptava-se perfeitamente à náutica, quer dizer, estava nauticamente correcta. Tanto assim é que os seus erros só vieram a ser notados pelos seus utilizadores quando a arte de navegar passou a recorrer a outros dados que entravam em conflito aberto com o traçado da carta.
Os dois dados até aqui referidos saíram da prática dos pilotos; os portulanos correspondiam ao mais elementar cuidado de preservar experiência vivida, e não envolviam, de início (na sua fase de périplos) mais do que o cálculo estimado das distâncias percorridas (com tendência para arredondar os números para as centenas, nos textos da Antiguidade) e a leitura, feita pela bússola, do rumo adoptado; o desenho da carta, embora exigisse já uma técnica (e ficaram célebres as escolas mediterrânicas de Génova, Veneza e Maiorca), não implicava mais do que alguns conhecimentos muito elementares de geometria». In Luís Albuquerque, Ciência e Experiência nos Descobrimentos Portugueses, Conselho da Europa, 1983, Biblioteca Breve 73, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, Livraria Bertrand, Instituto Camões.

Cortesia BibliotecaBreve/JDACT