sábado, 11 de julho de 2020

O Milagre de São Francisco. John Steinbeck. «A ocupação de Danny foi absolutamente directa. Dirigiu-se à porta de trás de um restaurante. Tem aí um pão velho para o meu cachorro?, perguntou ao cozinheiro»

jdact

«Apropriando-se da estrutura e dos temas do ciclo arturiano, Steinbeck imaginou um novo castelo de Camelot, situou-o numa das colinas pobres que cerca a cidade de Monterey, na Califórnia, e deu-lhe por habitantes um particularíssimo grupo de cavaleiros. No centro desta história, está Danny, cuja casa, tal como o castelo do Rei Artur, se torna um local de encontro para todos aqueles que anseiam por aventura, camaradagem e sentido de pertença a um grupo. Os cavaleiros em causa são paisanos, homens de diversas origens, cujos antepassados vieram estabelecer-se na Califórnia há centenas de anos. Sem laços constrangedores a empregos específicos, nem a outras complicações do American way of life, eles resistem com todas as suas forças à maré corruptora do trabalho honesto, e ao oceano de rectidão cívica que os cerca por todos os lados» In Sinopse

«… E assim Danny foi para o Texas, onde amansou mulas durante a guerra toda. Pilon foi para o Oregon com a infantaria e Big Joe, como mais tarde será esclarecido, foi para a cadeia.  Como Danny, de volta da guerra, tornou-se herdeiro e como jurou proteger os deserdados. Quando Danny voltou do exército para casa, soube que se tornara herdeiro e proprietário. O viejo, ou seja, o avô, morrera, deixando para Danny duas casinhas em Tortilla Fiat. Quando Danny soube disso, ficou um pouco abatido pela responsabilidade de ser dono. Antes mesmo de ir olhar a sua propriedade, comprou um garrafão de vinho tinto e bebeu sozinho quase tudo. O peso da responsabilidade então o abandonou, e o que havia de pior na sua natureza veio à tona. Berrou, quebrou algumas cadeiras num bilhar da Alvarado Street e travou duas pequenas mas gloriosas brigas. Ninguém deu muita atenção a Danny. Por fim, suas vacilantes pernas arqueadas o carregaram para o molhe aonde, àquela hora da manhã, os pescadores italianos começavam a chegar, com suas botas de borracha, a caminho do mar.
A antipatia racial sobrepôs-se ao bom senso de Danny. Ameaçou os pescadores. Sicilianos filhos da pu…!, gritou, acrescentando:  escória da prisão. Cachorrada. Continuou: chinga tu madre, píojo. Meteu o polegar no nariz e fez gestos obscenos abaixo da cintura. Os pescadores apenas riram, acenaram com os remos e disseram: olá, Danny. Quando voltou? Apareça hoje à noite. Temos vinho novo. Danny ficou indignado. Berrou: pon un condo a la cabeza. Eles responderam: até logo, Danny. Até à noite. Pularam para os seus pequenos barcos e remaram, afastando-se. Então ligaram os motores e partiram.
Danny estava ofendido. Voltou para a Alvarado Street, aonde chegou quebrando janelas, e, no segundo quarteirão, um polícia o segurou. O grande respeito de Danny pela lei fez com que não reagisse. Se não tivesse acabado de dar baixa do exército após a vitória contra a Alemanha, teria pegado seis meses de cadeia. Esse facto fez com que o juiz lhe desse só trinta dias. Por isso, durante um mês, Danny ficou sentado no seu catre na cadeia pública de Monterey. Às vezes desenhava coisas obscenas nas paredes e às vezes ficava pensando na sua carreira militar. Ali naquela cela da cadeia pública, o tempo custava a passar para Danny. Vez por outra, metiam um bêbado na sua cela por uma noite, mas o crime quase não existia em Monterey, e Danny ficava só. A princípio, os percevejos o incomodavam um pouco, mas quando estes se acostumaram com ele e ele com suas picadas, passaram a conviver pacificamente. Começou a fazer uma brincadeira divertida. Pegou um percevejo, esmagou-o contra a parede, fez-lhe um círculo em volta com um lápis e chamou-o Prefeito Clough. Depois pegou outros e deu a cada um o nome dos vereadores. Em pouco tempo, tinha uma parede inteira enfeitada com percevejos esmagados, cada um com o nome de um figurão local. Desenhou orelhas e rabos neles e também narigões e bigodes. Tito Ralph, o carcereiro, ficou escandalizado. Mas não fez queixa porque Danny não incluiu a justiça que o condenara nem os membros da polícia. Ele tinha um enorme respeito pela lei.
Certa noite, quando a prisão estava vazia, Tito Ralph foi até à cela de Danny com duas garrafas de vinho. Uma hora depois, saiu para buscar mais vinho e Danny foi com ele. A prisão era muito triste. Ficaram no Torrelli, onde compraram o vinho, até serem postos para fora. Depois disso, Danny foi para o pinheiral, onde ficou dormindo, enquanto Tito Ralph voltou cambaleando para comunicar sua fuga. Quando o sol ofuscante acordou Danny, por volta do meio-dia; ele resolveu esconder-se o dia inteiro para evitar a perseguição. Correu e abrigou-se numa sebe. Olhou por entre os arbustos como uma raposa caçada. E, de noite, depois que as normas foram cumpridas, saiu e voltou à sua ocupação.
A ocupação de Danny foi absolutamente directa. Dirigiu-se à porta de trás de um restaurante. Tem aí um pão velho para o meu cachorro?, perguntou ao cozinheiro. E enquanto aquela crédula criatura estava embrulhando o alimento, Danny roubou duas fatias de presunto, quatro ovos, uma costeleta de carneiro e um mata-moscas. Um dia lhe pagarei, disse Danny. Não precisa pagar por sobras. Se você não as levar, eu as jogarei fora. Ouvindo isso, Danny sentiu a consciência mais leve pelo roubo. Se essa era a filosofia deles, aparentemente ele não era culpado. Voltou ao Torrelli, trocou os quatro ovos, a costeleta de carneiro e o mata-moscas por um copo cheio de bagaceira e voltou para o mato, a fim de preparar o seu jantar.
A noite estava escura e húmida. A neblina pendia como farrapos de gaze dos pinheiros escuros que demarcavam os limites de Monterey. Danny baixou a cabeça e correu para o abrigo da floresta. Distinguiu à sua frente uma outra figura apressada e, quando a distância diminuiu, reconheceu o andar rápido do seu amigo Pilon. Danny era um rapaz generoso, mas lembrou que havia vendido toda a sua comida, com excepção dos dois pedaços de presunto e do pão amanhecido. Não vou tomar conhecimento de Pilon, resolveu. Ele anda como se estivesse cheio de peru assado e coisas assim». In John Steinbeck, O Milagre de São Francisco, 1935, Livros do Brasil, 2013, ISBN 978-972-382-870-2.

Cortesia de ELivrosdoBrasil/JDACT