terça-feira, 7 de julho de 2020

Os Sete Pilares da Sabedoria. T.E. Lawrence. «O deserto que desempenhou esta grande função em torno dos oásis, construindo, assim, o carácter da Arábia, variava de natureza»



Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) A primeira dificuldade do movimento árabe foi a de se saber onde os árabes se encontravam. Sendo povo resultante de cruzamentos, seu nome havia mudado de sentido, lentamente, de ano para ano. Em tempos remotos, designava um árabe. Existia um país chamado Arábia; mas isto nada significava para o nosso caso. Conhecia-se uma língua denominada árabe; e era nela que nos devíamos apoiar. Tratava-se do idioma corrente da Síria, da Palestina, da Mesopotâmia e da grande península denominada Arábia, nos mapas. Antes da conquista dos muçulmanos, estas regiões foram habitadas por povos diferentes, falando idiomas da família árabe. Chamávamo-los semíticos, mas incorretamente (dando-se o mesmo com termos mais científicos). Contudo, os idiomas árabe, assírio, babilónio, fenício, hebraico, aramaico e siríaco eram aparentados; os vestígios das influências recíprocas, no passado, e mesmo da origem comum, reforçavam-se pelo nosso conhecimento, segundo o qual o aspecto e os hábitos dos povos de língua árabe da actualidade, na Ásia, embora sendo variados como campo de papoilas, ofereciam semelhanças permanentes e essenciais. Podíamos, pois, com perfeita propriedade, denominá-los primos, e primos certamente, embora tristemente, cônscios do seu próprio parentesco.
As regiões de língua árabe, na Ásia, neste sentido, formavam um tosco paralelogramo. A linha norte corria de Alexandria, no Mediterrâneo, através da Mesopotâmia, a caminho do oriente, até ao Tigre. A linha sul era a margem do oceano Índico, desde Aden até Muscat. A oeste, limitava-se pelo Mediterrâneo, pelo canal de Suez e pelo mar Vermelho, até Aden. A leste, pelo Tigre e pelo golfo pérsico, até Muscat. Este quadrado de terra, tão grande como a Índia, formava a pátria dos nossos semitas, onde nenhuma raça estranha conseguiu manter-se por longo tempo, embora os egípcios, os hititas, os filistinos, os persas, os gregos, os romanos, os turcos e os francos o houvessem tentado, por maneiras várias. Todos, ao fim, se viram derrotados, e os elementos dispersos foram absorvidos pelas fortes características da raça semítica. Os semitas, por vezes, alastraram-se para fora dessa área, sendo assimilados pelo mundo exterior. O Egipto, a Argélia, Marrocos, a ilha de Malta, a Sicília, a Espanha, a Cilícia e a França absorveram e fizeram desaparecer colónias semíticas. Somente em Trípoli, na África, e no perene milagre da Judeia, os remotos semitas conservaram alguma coisa da sua identidade e da sua força.
A origem destes povos foi motivo para debates académicos; mas, para a compreensão da sua revolta, as actuais diferenças sociais e políticas se revestiam de importância, e só podiam ser assinaladas após o exame da sua geografia. O continente por eles habitado continha certas grandes zonas, cujas profundas diversidades físicas impunham costumes diversos aos seus nativos. A ocidente, o paralelogramo se emoldurava, de Alexandria até Aden, numa cadeia de montanhas, chamada (ao norte) Síria, e, progressivamente, em direcção ao sul, denominada Palestina, Média, Hedjaz, e, afinal, Iémen. A cordilheira erguia-se à altura média de novecentos metros, com picos de três a quatro mil metros. Voltava-se para oeste, era bem irrigada pelas chuvas e pelas nuvens que vinham do mar, e, em geral, inteiramente povoada. Outro renque de montanhas habitadas, de face para o oceano Índico, formava o lado sul do paralelogramo. A fronteira oriental constituía-se, a princípio, de uma planície aluvial, denominada Mesopotâmia, mas, ao sul de Basra, não passava de litoral ao nível do mar, chamado Kuwait, e depois Hasa, até Gattar. A maior parte desta planície era povoada. Tais planícies e montanhas habitadas emolduravam uma zona de deserto sem água, em cujo coração se encontrava um arquipélago de oásis povoados e dotados de água, chamados Kasim e Aridh. Neste grupo de oásis, ficava o verdadeiro centro da Arábia, o repositório do seu espírito nativo, e a sua mais cônscia individualidade. O deserto envolvia-o todo, mantendo-o livre de contactos.
O deserto que desempenhou esta grande função em torno dos oásis, construindo, assim, o carácter da Arábia, variava de natureza. Ao sul dos oásis, parecia ser um intransponível mar de areia, estendendo-se até perto do populoso escarpamento da margem do oceano Índico, separando-o, a leste, da história da Arábia, e evitando que exercesse qualquer influência sobre a moral e a política árabe. Hadhramaut, como chamavam a esta costa sul, fazia parte da história das Índias Holandesas; e o seu pensamento se projectava para Java, mais do que na direcção da Arábia. A oeste dos oásis, entre estes e as montanhas do Hedjaz, havia o deserto de Nejd, zona de cascalho e de lava, contendo pouca areia. A leste, entre eles e Kuwait, estendia-se outra zona semelhante, de cascalho, mas com algumas grandes faixas de areia fofa, o que tornava difícil a travessia. Ao norte dos oásis, desdobrava-se uma zona de areia, e, depois, uma imensa planície de cascalho e de lava, tomando conta de tudo, entre a linha oriental da Síria e as margens do Eufrates, onde começava a Mesopotâmia. A viabilidade deste deserto norte, para homens e para automóveis, fez com que a revolta árabe obtivesse êxito imediato». In T.E. Lawrence, Os Sete Pilares da Sabedoria, 1922, 1926, Publicações Europa-América, 2004, ISBN 978-972-100-483-2.

Cortesia de PEAmérica/JDACT