Cortesia
de wikipedia e jdact
O
olhar para trás
«Nem surgisse um olhar de piedade
ou de amor
Nem houvesse uma branca mão que
apaziguasse minha fronte palpitante...
Eu estaria sempre como um círio
queimando para o céu a minha fatalidade
Sobre o cadáver ainda morno desse
passado adolescente.
Talvez no espaço perfeito
aparecesse a visão nua
Ou talvez a porta do oratório se
fosse abrindo misteriosamente...
Eu estaria esquecido, tateando
suavemente a face do filho morto
Partido de dor, chorando sobre o
seu corpo insepultável.
Talvez da carne do homem
prostrado se visse sair uma sombra igual à minha
Que amasse as andorinhas, os
seios virgens, os perfumes e os lírios da terra
Talvez…, mas todas as visões
estariam também em minhas lágrimas boiando
E elas seriam como óleo santo e
como pétalas se derramando sobre o nada.
Alguém gritaria longe: quantas
rosas nos deu a primavera!...
Eu olharia vagamente o jardim
cheio de sol e de cores noivas se enlaçando
Talvez mesmo meu olhar seguisse
da flor o vôo rápido de um pássaro
Mas sob meus dedos vivos estaria
a sua boca fria e os seus cabelos luminosos.
Rumores chegariam a mim, distintos
como passos na madrugada
Uma voz cantou, foi a irmã, foi a
irmã vestida de branco!, a sua voz é fresca
(como o orvalho...
Beijam-me a face, irmã vestida de
azul, por que estás triste?
Deu-te a vida a velar um passado
também?
Voltaria o silêncio, seria uma
quietude de nave em Senhor Morto
Numa onda de dor eu tomaria a
pobre face em minhas mãos angustiadas
Auscultaria o sopro, diria à toa.
Escuta, acorda
Porque me deixaste assim sem me
dizeres quem eu sou?
E o olhar estaria ansioso
esperando
E a cabeça ao sabor da mágoa
balançando
E o coração fugindo e o coração
voltando
E os minutos passando e os
minutos passando...
No entanto, dentro do sol a minha
sombra se projecta
Sobre as casas avança o seu vago
perfil tristonho
Anda, dilui-se, dobra-se nos
degraus das altas escadas silenciosas
E morre quando o prazer pede a
treva para a consumação da sua miséria.
E que ela vai sofrer o instante
que me falta
Esse instante de amor, de sonho,
de esquecimento
E quando chega, a horas mortas,
deixa em meu ser uma braçada de
(lembranças
Que
eu desfolho saudoso sobre o corpo embalsamado do eterno ausente.
Nem surgisse em minhas mãos a
rósea ferida
Nem porejasse em minha pele o
sangue da agonia...
Eu diria, Senhor, por que me
escolheste a mim que sou escravo
Por que chegaste a mim cheio de
chagas?
Nem do meu vazio te criasses,
anjo que eu sonhei de brancos seios
De branco ventre e de brancas
pernas acordadas
Nem vibrasses no espaço em que te
moldei perfeita...
Eu te diria. Por que vieste-te
dar ao já vendido?
Oh, estranho húmus deste ser
inerme e que eu sinto latente
Escorre sobre mim como o luar nas
fontes pobres
Embriaga o meu peito do teu bafo
que é como o sândalo
Enche o meu espírito do teu
sangue que é a própria vida!
Fora, um riso de criança,
longínqua infância da hóstia consagrada
Aqui estou ardendo a minha
eternidade junto ao teu corpo frágil!
Eu sei que a morte abrirá no meu
deserto fontes maravilhosas
E vozes que eu não sabia em mim
lutarão contra a Voz.
Agora porém estou vivendo da tua
chama como a cera
O infinito, nada poderá contra
mim porque de mim quer tudo
Ele ama no teu sereno cadáver o
terrível cadáver que eu seria
O belo cadáver nu cheio de
cicatriz e de úlceras.
Quem chamou por mim, tu, mãe? Teu
filho sonha...
Lembras-te, mãe, a juventude, a
grande praia enluarada...
Pensaste em mim, mãe? Oh, tudo é
tão triste
A
casa, o jardim, o teu olhar, o meu olhar, o olhar de Deus...
[…]
In Vinicius de Moraes, Antologia Poética, 1954, Companhia das Letras, 2015, ISBN 978-989-877-534-4.
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