terça-feira, 28 de julho de 2020

Quando Lisboa Tremeu. 1755. Domingos Amaral. «Só vários meses depois do terramoto, já de novo preso, é que tomei conhecimento do que acontecera naquelas horas em Belém, aonde o rei José I e a corte foram confrontados com o sismo»

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«(…) Encolhi os ombros, despi as roupas de prisioneiro e vesti umas calças e uma camisa que encontrara no armário. Contrariado, o árabe mudou também de roupa. Contudo, não encontrámos sapatos que nos servissem e tivemos de manter os que trazíamos da prisão, uma espécie de socas de pano, nada úteis para correr naquele solo escavacado. De repente, ouvi o árabe a falar sozinho, e vi-o perto de outro armário, onde descobrira dois casacos castanhos. Eram demasiado pomposos para nós, e disse-lhe: quem nos vir com eles vai desconfiar. Com pena, Muhammed atirou os casacos para o soalho. Estava na altura de ir embora, mas pediu-me que esperasse mais um pouco, e abriu mais gavetas, ao fundo da sala. O que fazes? Vamos, protestei. Esperar, haver sempre jóias... Esvaziou as cómodas, mas desistiu, desiludido. Gente sovina, murmurou. Se calhar, tiveram tempo para levar as jóias, afirmei. Saímos da casa, em direcção à fonte. Quando lá chegámos, vimos os soldados, e escondemo-nos. Foi aí que assistimos à cena que há pouco contei: a chegada do rapaz, os seus gritos, os soldados a correrem atrás do espanhol, o Cão Negro a aparecer e o rapaz a fugir. Esperava que o Cão Negro o perseguisse, mas, ao ver a fonte, o espanhol parou de correr, e a sua escolta também. Havia pessoas, feridas e combalidas, à espera da sua vez de beber, mas o Cão Negro passou à frente delas e, quando um homem o tentou parar, ele abateu-o com a barra de ferro. Assustadas, as outras pessoas afastaram-se imediatamente, e o Cão Negro e os dois espanhóis beberam e depois lavaram-se. Dois homens ganharam coragem e voltaram a aproximar-se da fonte, mas cometeram um erro. Os três bandidos desataram a bater-lhes, mataram-nos e roubaram-nos. Só depois beberam mais água e se foram embora, carregando às costas a roupa roubada. Muhammed e eu saímos do esconderijo dez minutos mais tarde, dirigimo-nos à fonte e bebemos água. Mais gente estava a aparecer e, mesmo que observassem os corpos dos caídos no chão, ninguém se importava com eles. As pessoas só queriam beber água, não queriam saber quem tinha morrido, nem como, nem porquê.

Só vários meses depois do terramoto, já de novo preso, é que tomei conhecimento do que acontecera naquelas horas em Belém, aonde o rei José I e a corte foram confrontados com o sismo. Nos dias que se seguiram, soube-se que o rei não morrera, ao contrário do que chegou a correr nas primeiras horas, e nem sequer ficara ferido. Também se soube que, em Belém, os estragos haviam sido menores do que no centro da cidade; não se sentiram os efeitos das ondas gigantes que inundaram o Terreiro do Paço; e os terríveis incêndios, que alastraram durante dias nas zonas por onde nós andávamos, nunca chegaram lá. Poupada a corte a males maiores, o monarca conseguiu, com a ajuda de Sebastião José Carvalho Melo, reorganizar a vida do reino. Tudo isto era do conhecimento geral, mas os detalhes, os pormenores do que se passara em Belém, só me foram revelados na visita que Bernardino, um ajudante de escrivão ao serviço do rei, meu conhecido do passado, e que por golpe do destino iria acabar como ajudante principal de Sebastião José Carvalho Melo, me fez à prisão. Naquela manhã do dia 1 de Novembro de 1755, Bernardino tinha acompanhado a corte desde o Terreiro do Paço até Belém, num passeio matinal que se iniciara muito cedo, pois o rei queria ir ouvir missa junto aos Jerónimos, e obrigara todos a madrugarem, para que a comitiva não se atrasasse. Sonolento e contrariado, Bernardino apresentara-se no pátio do Paço para acompanhar a família real naquela expedição. Na sua carruagem, viajavam também duas aias e um padre jesuíta, chamado Malagrida, um homem agreste e desagradável, que o rei tinha em grande estima e a quem se confessava. Tal como muitos outros, Bernardino considerava-o enervante e sinuoso, e não conseguia trocar com ele mais do que duas palavras, além de embirrar com a sua barbicha de bode, um triângulo pontiagudo que se prolongava até meio do peito.
Como as aias eram gordas e feias, e o padre rezava o terço em silêncio, apenas mexendo os lábios sem produzir qualquer som, à medida que avançava ave-marias no seu rosário, Bernardino adormeceu entre Remolares e a ponte de Alcântara. Só acordou na Junqueira, onde apreciou os estéticos palacetes dos muitos nobres que se haviam ali instalado. Sorumbático, o padre Malagrida produziu comentários pouco abonatórios sobre a luxúria dos proprietários, um exemplo mais da perdição geral que, segundo ele, contaminava a cidade. Sem lhe dar troco, Bernardino fingiu adormecer de novo, mas mais não fez do que passar mentalmente em revista os seus afazeres. Depois da missa, o rei certamente desejaria conhecer os assuntos pendentes, mas, tirando aquela invulgar petição, não havia nada de especial com que valesse a pena incomodar Sua Majestade num sábado.
Com o secretário do Reino cada vez mais velho e doente, os assuntos acumulavam-se, e muitos tinham de ser directamente levados ao rei, ou então dirigidos ao secretário dos Negócios Estrangeiros, a quem Sua Majestade recorria cada vez mais. Bernardino intimidava-se bastante na presença de Sebastião José Carvalho Melo. O homem era altíssimo e os seus modos ríspidos causavam apreensão. Não era boa ideia cair em desgraça junto dele. Além disso, Bernardino temia que Sebastião José de Carvalho e Melo o reconhecesse dos tempos da juventude, quando pertencera ao grupo de jovens arruaceiros liderados pelo actual secretário dos Negócios Estrangeiros. Era sabido que Sebastião José não gostava que lhe relembrassem esse passado desviante e de má reputação, quando era conhecido por o Carvalhão, e por isso Bernardino sempre evitara reavivar as memórias desses tempos, curtos, em que ambos tinham convivido. Contudo, aquela estranha petição tinha de obter uma resposta. Provinha de um prisioneiro do Limoeiro, conhecido pelo nome de Santamaria, um pirata árabe que tinha sido entregue às autoridades portuguesas pelos franceses, e que agora revelava ser português. Segundo dizia, nascera em Portugal, aqui se tornara marinheiro, e só depois fora preso pelos árabes». In Domingos Amaral, Quando Lisboa Tremeu, Lisboa, 1755, O Dia de Todos os Santos vai mudar a vida de 5 pessoas para sempre, Casa das Letras, Oficina do Livro, 2010, ISBN 978-972-461-986-6.

Cortesia de CdasLetras/JDACT