quinta-feira, 23 de julho de 2020

A Casa do Pó. Fernando Campos. «Por toda a parte a febre da construção: eram os novos paços reais como o de Enxobregas, o de São Cristóvão, o da Ribeira, que, de certo modo, destronavam…»

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A porta do mundo
«(…) Chegamos!, dizia-me o barqueiro com insistência, vendo-me distraído, enquanto, já muito perto da margem, contornava um obstáculo e fazia manobra para acostar ao cais. Frei Fuão, chegava do alto de uma amurada o ronco de um mareante de nariz vermelho e dentes podres, passe na boa hora vossa paternidade, que com o que os meus olhos têm visto e os meus ouvidos ouvido já não hei mister vossa bênção!, e grunhia uma gargalhada avinhada que preludiava o vomito. E eu seguia pensando que também havia aí lugar para destemperos que certamente seriam frutos naturais de tempos de tanta convulsão e novidade. Desembarquei na Ribeira, junto dos estaleiros, que fervilhavam na azáfama da construção e restauro de embarcações. Perto de mim os carpinteiros pregavam já as pranchas curvas do bojo de um costado que os tanoeiros tinham afeiçoado. Mais adiante procediam calafates, manejando hábeis o maúlo, à substituição da estopa das junturas, de uma velha caravela por estopa nova que primeiro mergulhavam num caldeirão de piche para em seguida a encalcar outra vez nas juntas das tábuas com a encalcadeira. Uma nau já pronta, a madeira crua ainda por pintar, toda branca, lembrava uma criança acabada de nascer-que milagre!
Envernizava-se, mais à frente, uma outra e revestia-se, até à linha de água, de espessas chapas de breu, que fervia em enormes panelões fumegantes. Na taracena, um galeão arrombado aguardava a sua vez de ser curado das feridas havidas nas traições das sirtes... Não poucas vezes, depois, nas minhas deambulações pela cidade, vinha até ali presenciar a faina, ver uma nau, toda garrida, deslizar pela primeira vez na rampa do estaleiro e entrar baloiçante na água que chapinava. Era uma espécie de baptismo e assim o bem entendiam os mesteirais, pois esse acto era para eles uma verdadeira festa, que celebravam engalanando a nau e bebendo vinho em sua honra. Aconteceu um dia estar presente à largada de uma armada na praia do Restelo, cerimónia que a presença do rei em extremo solenizou. Cantou-se missa no recente e formoso mosteiro dos frades jerónimos e, em seguida, caminhou-se em procissão até ao areal, onde os mareantes haviam de tomar os batéis em direcção às naus, que se viam ao largo embandeiradas. El-rei e a sua comitiva já tomavam lugar no varandim rendilhado do baluarte de Belém, de cujas ameias chanfradas, no pátio em baixo, o bispo dava a bênção à armada e aos marinheiros. Era o momento mais penoso! Cenas lancinantes de lágrimas, gritos e desmaios! Mães, esposas, filhos que se tinham de desarreigar dos braços dos que partiam!... Bem se esforçavam estes por sorrir, por dizer palavras despreocupadas... Via-se-lhes bem no brilho do olhar e no embargo da fala o que lhes ia lá por dentro. Alguns, para conservarem a firmeza de ânimo tão necessária naquelas circunstâncias, não olhavam de frente os seus, fingiam-se alheados e quase não se despediam, viravam costas e metiam-se no primeiro batel que largava. Quando todos já estavam embarcados, fez-se entre a multidão da praia um grande silêncio e até aqueles que por seus ditos e resmungos se mostravam em desacordo e inconformados deixavam de se ouvir. Só voltariam a falar e a vociferar argumentos que calavam fundo em muitos dos que ficavam quando, consumado o acto, já se não avistava a armada, encoberta pela terra ultrapassada a barra. Dispersava então a multidão em pequenos grupos que, pela sua postura, procedimento e aspecto, denotavam sentimentos e opiniões diversos e até contraditórios, a tristeza, a dor, a angústia, a desolação, a raiva impotente, a euforia, o orgulho contido, a serena aquiescência, de tal modo era tamanha a incerteza do desfecho destes empreendimentos. Para muitos era um pranteado regresso, um magoado silêncio, como quando se volta do cemitério após um enterramento; para outros, um apressado e tagarelado debandar, como quem vem da romaria.
Caminhei por entre as pessoas, ao longo da margem. Um bando de rapazes entre os dez e os doze anos jogava o eixo e quando um saltava por cima do outro exclamava Vasco da Gama à Índia!, e ia amochar mais adiante. De maneira que, considerava eu com os meus botões, até nos jogos dos putos (como dizem os italianos, que tantas vezes os ouvi, em Veneza, em Trento e noutras terras, chamar pulti à rapaziada e até uma ocasião li num livro, já me não lembro qual, a mesma designação aplicada ao Menino Jesus: quando Nostro Signore era putto…, até nos jogos dos putos se notava a influência da novidade dos tempos. Volvi a vista atrás a apreciar, numa visão de conjunto, a grande mole do Mosteiro dos Jerónimos a engastar a brancura da sua pedra na verdura espessa da vertente da serra de Monsanto, e o perfil delicado do baluarte do Restelo, que enfrentava o Tejo como a proa e o castelo de uma nau altaneira e se recortava atenta no azul do céu. Esses dois monumentos a ocidente, e a Madre de Deus, que andava em obras de ampliação e enriquecimento, a oriente, fechavam os extremos por onde a cidade se estava a expandir. Por toda a parte a febre da construção: eram os novos paços reais como o de Enxobregas, o de São Cristóvão, o da Ribeira, que, de certo modo, destronavam o velho paço dos Estaus; eram os edifícios do Hospital de Todos-os-Santos e da Misericórdia, os solares da fidalguia, os armazéns, a Casa da Índia, as oficinas dos mesteirais e lojas dos mercadores, que na cidade antiga adentro das muralhas se arrumavam ordeiramente por ruas certas, do ordenamento do bom rei João primeiro deste nome, mas agora se espalhavam indisciplinadamente extramuros. Todavia era esta variedade e mistura de mesteres e mercâncias que dava a nota inédita e peculiar da cidade nova que crescia e alastrava como óleo perfumado de benjoim, pois se sentia por detrás de todo este afã e medrar a riqueza vinda do ultramar. As casas de morada enfileiravam-se em novos bairros que galgavam e desciam as colinas em redor da velha cerca. Abriam-se ruas novas e largas, mais arejadas e limpas que as vielas e betesgas antigas, tão sujas e malcheirosas, onde morava a doença e nascia a miúde a pestilência». In Fernando Campos, A Casa do Pó, Difel, 1986, Editora Objectiva, Alfaguara, 2012, ISBN 978-989-672-114-5.

Cortesia de Difel/Alfaguara/JDACT