«Se Cláudia fosse uma rapariga dada aos delírios românticos próprios da
sua idade, teria escolhido um outro cenário para princípio de paixão. Mas
Cláudia trazia os ânimos desprevenidos, e deu-lhe para entontecer por Dinis no
funeral de Mariana. Tratava-se, aliás, de uma bela cerimónia. O pai da morta
explicou que a pequena se tinha desequilibrado da varanda, e o padre lá fez de
conta que o Senhor escreve direito por linhas tortas. Assim, a pobre alma
passou oficialmente ao convívio dos anjos com um visto de vertigem
involuntária. Os suicídios são excelentes estimulantes da solidariedade humana.
Viva, Mariana não despertara maior entusiasmo que o das chalaças de
circunstância. Nunca ninguém cuidou de averiguar quem ela era, porque ela
trazia sobre o corpo o único antídoto de curiosidade eficaz numa mulher de
dezasseis anos: a gordura. Mariana era realmente tão gorda que podia
permitir-se passear pelas ruas do bairro às três da madrugada sem despertar o
dente certeiro das porteiras ou o álcool fogoso dos rapazes. Nunca, ninguém
disse mal dela, como normalmente ali se dizia das pessoas a quem se queria bem.
Agora, pela primeira vez, Mariana tinha a importância da culpa. Mas nem aquela gloriosa culpa
parecia pertencer-lhe por inteiro; os vizinhos culpavam o pai, a família
culpava a morte precoce da mãe, os velhos culpavam os novos.
Só
os novos, liderados pelo namorado de Cláudia, faziam a devida vénia à defunta:
ela matou-se porque quis, disseram. Ela tinha ousado enfrentar a morte, e isso
lhes bastava. Era por isso que estavam todos ali, aperaltadíssimos. Os rapazes
puseram gravata e pentearam os cabelos. As meninas prenderam com ganchos as
franjas enormes e rezaram convictamente as orações esquecidas. Até Luísa e
Laura, as gémeas escandalosas, apareceram de saia pelos joelhos, com olheiras
de martírio. Como os grandes santos e os grandes criminosos, eles preferiam as
vaidades profundas às verdades aparentes. Teresa, a lírica, viria a escrever um
poema intitulado Lágrimas por Mariana, combinando a chuva daquele
enterro com os gritos da senhora do 34 que vinha do café e descobriu o corpo
desfeito no cimento. Mas o grupo havia de ler o poema em voz alta e no meio de
grande galhofa, para que Teresa percebesse que aqueles floreados piedosos eram
de um despudor indigno.
Eles não tinham senão a sabedoria
pura dos afectos brutos. Surripiavam os espelhos dos elevadores só pelo prazer
de os esmigalhar pelas escadas, de se observarem multiplicados neles, e de
esperar que algum estranho acabasse por se ferir. Estragar os adereços do mundo
trabalhador e roubar-lhe pequenas utilidades, como carros e dinheiro, era
cumprir uma missão de rigor e limpeza. Nunca eram descobertos e toda a gente
sabia que eram eles. Esta impunidade provava-lhes que eram temidos, e que o
mundo adulto era feito do palavroso convívio com o medo. Ouviam sermões
imensos, pasmavam de ver a quantidade de palavras que os velhos eram capazes de
arranjar para embrulhar os caminhos que não tinham tido coragem de seguir. Era
só por isso que odiavam as escolas e faziam questão de prescindir das palavras.
Para proteger essa pureza radical a que se tem chamado, consoante os tempos e
as conveniências, loucura ou lucidez.
A tragédia de Mariana foi corriqueira e morna como todas as
grandes tragédias: amaram-na tanto que se esqueceram de reparar nela. A mãe
morrera-lhe ao primeiro ano de vida. O único facto que com ela partilhara, para
além do parto, foi a febre tifóide que pouco depois a mataria. As mães têm
normalmente uma vantagem sobre os pais: precisam menos dos filhos do que do
exercício do amor que os filhos lhes proporcionam. Dedicam-se às crianças como
os marinheiros antigos se dedicavam ao mar: com susto, surpresa e doidice. Privada
de mãe, Mariana foi condenada a ser, desde a infância, adolescente. Uma estátua
parada no tempo para proteger do envelhecimento o pai, os avós, a família». In
Inês Pedrosa, A Instrução dos Amantes, Publicações dom Quixote, 1997, ISBN
978-972-200-972-0.
Cortesia
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