segunda-feira, 23 de outubro de 2017

A Instrução dos Amantes. Inês Pedrosa. «Eles não tinham senão a sabedoria pura dos afectos brutos. Surripiavam os espelhos dos elevadores só pelo prazer de os esmigalhar pelas escadas…»

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«Se Cláudia fosse uma rapariga dada aos delírios românticos próprios da sua idade, teria escolhido um outro cenário para princípio de paixão. Mas Cláudia trazia os ânimos desprevenidos, e deu-lhe para entontecer por Dinis no funeral de Mariana. Tratava-se, aliás, de uma bela cerimónia. O pai da morta explicou que a pequena se tinha desequilibrado da varanda, e o padre lá fez de conta que o Senhor escreve direito por linhas tortas. Assim, a pobre alma passou oficialmente ao convívio dos anjos com um visto de vertigem involuntária. Os suicídios são excelentes estimulantes da solidariedade humana. Viva, Mariana não despertara maior entusiasmo que o das chalaças de circunstância. Nunca ninguém cuidou de averiguar quem ela era, porque ela trazia sobre o corpo o único antídoto de curiosidade eficaz numa mulher de dezasseis anos: a gordura. Mariana era realmente tão gorda que podia permitir-se passear pelas ruas do bairro às três da madrugada sem despertar o dente certeiro das porteiras ou o álcool fogoso dos rapazes. Nunca, ninguém disse mal dela, como normalmente ali se dizia das pessoas a quem se queria bem. Agora, pela primeira vez, Mariana tinha a importância da culpa. Mas nem aquela gloriosa culpa parecia pertencer-lhe por inteiro; os vizinhos culpavam o pai, a família culpava a morte precoce da mãe, os velhos culpavam os novos.
Só os novos, liderados pelo namorado de Cláudia, faziam a devida vénia à defunta: ela matou-se porque quis, disseram. Ela tinha ousado enfrentar a morte, e isso lhes bastava. Era por isso que estavam todos ali, aperaltadíssimos. Os rapazes puseram gravata e pentearam os cabelos. As meninas prenderam com ganchos as franjas enormes e rezaram convictamente as orações esquecidas. Até Luísa e Laura, as gémeas escandalosas, apareceram de saia pelos joelhos, com olheiras de martírio. Como os grandes santos e os grandes criminosos, eles preferiam as vaidades profundas às verdades aparentes. Teresa, a lírica, viria a escrever um poema intitulado Lágrimas por Mariana, combinando a chuva daquele enterro com os gritos da senhora do 34 que vinha do café e descobriu o corpo desfeito no cimento. Mas o grupo havia de ler o poema em voz alta e no meio de grande galhofa, para que Teresa percebesse que aqueles floreados piedosos eram de um despudor indigno.
Eles não tinham senão a sabedoria pura dos afectos brutos. Surripiavam os espelhos dos elevadores só pelo prazer de os esmigalhar pelas escadas, de se observarem multiplicados neles, e de esperar que algum estranho acabasse por se ferir. Estragar os adereços do mundo trabalhador e roubar-lhe pequenas utilidades, como carros e dinheiro, era cumprir uma missão de rigor e limpeza. Nunca eram descobertos e toda a gente sabia que eram eles. Esta impunidade provava-lhes que eram temidos, e que o mundo adulto era feito do palavroso convívio com o medo. Ouviam sermões imensos, pasmavam de ver a quantidade de palavras que os velhos eram capazes de arranjar para embrulhar os caminhos que não tinham tido coragem de seguir. Era só por isso que odiavam as escolas e faziam questão de prescindir das palavras. Para proteger essa pureza radical a que se tem chamado, consoante os tempos e as conveniências, loucura ou lucidez.
A tragédia de Mariana foi corriqueira e morna como todas as grandes tragédias: amaram-na tanto que se esqueceram de reparar nela. A mãe morrera-lhe ao primeiro ano de vida. O único facto que com ela partilhara, para além do parto, foi a febre tifóide que pouco depois a mataria. As mães têm normalmente uma vantagem sobre os pais: precisam menos dos filhos do que do exercício do amor que os filhos lhes proporcionam. Dedicam-se às crianças como os marinheiros antigos se dedicavam ao mar: com susto, surpresa e doidice. Privada de mãe, Mariana foi condenada a ser, desde a infância, adolescente. Uma estátua parada no tempo para proteger do envelhecimento o pai, os avós, a família». In Inês Pedrosa, A Instrução dos Amantes, Publicações dom Quixote, 1997, ISBN 978-972-200-972-0.

Cortesia de PdomQuixote/JDACT