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Nunca teve acusação formal, nunca
teve advogado, nunca teve um médico. Ela sabia que ninguém viria socorrê-la.
Ela sabia que existem pessoas assim, de quem ninguém quer saber. A fidelidade do
contacto devia-se a isso, à sua clausura. Nessa altura, e já com três anos de
pena cumprida, era uma reclusa com direito a antiguidade reconhecida o que lhe
abria acesso a um certo número de privilégios, posição reforçada pelo sem fim
de favores sexuais às guardas mais fogosas. O acesso à internet fora uma das
recompensas assim obtidas. O pequeno ecrã tornara-se para ela o último reduto
de liberdade, o único meio de ter uma vida. Anos mais tarde sei que foi um dos
primeiros habitantes de Second Life onde criou uma rede de cabeleireiros. Jean7
parecia ser diferente, sincero. Tudo corria pelo melhor. Nos primeiros dados
pessoais declarou ser engenheiro, tinha 36 anos. Nunca casado. Não tinha
filhos. No dia-a-dia, o seu objectivo era tentar ser uma pessoa melhor,
confessou. O maior desafio da sua vida.
Apanhou-me pela curiosidade. Imaginei que procurava,
talvez, impressionar-me. De qualquer forma, não tinha nada a perder em tirar as
dúvidas e, se por qualquer motivo, me surgisse algum pavor ou cobardia, tinha a
firme intenção de prestar ouvidos a Raquel. Ela defendia abertamente a bondade
natural de cada criatura. Refeita da doença, a minha melhor amiga tornara-se
beata, piamente devota. Para Raquel, todas as pessoas são boas, convencida de
que somos parte de um ser divino. Suspeitava da sua fé profunda, mesmo sem
nunca termos falado do assunto. Por vezes, ela deixava escapar frases assim,
sem se alongar demasiado sobre as suas convicções. Adivinhava-lhe, nos breves
momentos de silêncio, uma alma profundamente religiosa que aprendera o valor de
cada segundo, como se tivesse atravessado o infinito e tocado a divina fronte. A
vida é um frágil milagre, Laura. Mas, sabes, o tempo é pouco e a aprendizagem
lenta, costumava ela dizer. O tempo sempre esteve contra mim. Poderia, talvez,
ter sido melhor se tivesse tido mais
tempo.
Poderíamos, possivelmente, ser todos melhores se pudéssemos
praticar a vida por longos períodos de existência, experimentando tudo,
conhecendo todas as coisas da terra, do universo e uns dos outros. Acho que
jamais, nem eu nem Raquel o saberemos. O que sei, com toda a certeza, é que uma
vida é sempre curta. O que sei, com toda a certeza, é que uma vida dominada e
ditada pela torrente das imagens é estupidamente mais curta. E donde nos vem,
por vezes, esta vontade doentia de morrer, de antecipar o fim, perguntava a
Raquel. E porque julgas tu poder escapar à angústia de ser e de estar vivo, respondeu
no mesmo modo inquisitório e afectuoso. A angústia não é outra coisa que a tua
mortalidade latente, Laura. É como se, uma vez aqui chegados, ninguém
sobrevivesse à idade da adolescência, uma época de errância, terror e
deslumbramento. Mesmo com duzentos anos de vida seriamos ainda adolescentes. Era
tão raro vê-la fazer uso da palavra, que nesses momentos, esforçava-me para não
abrir o bico. No fundo, irritava-me a serenidade com que ela pousava as
palavras sobre a mesa e fazia deambular o olhar entre os ocupantes das cadeiras
do Café Chantal, perto de Montmartre, nosso ponto de encontro habitual. Nesses
momentos, Raquel irradiava a imponderada luz das tardes de Primavera, quando
nem a brisa perturba o grávido repouso das árvores. Ela vivia nessa quietude
diária, sem objectivos, sem planos para o dia seguinte nem para as horas mais
próximas. Trabalhava num dos laboratórios do Institut Pasteur, no centro de
Paris e, para além do seu universo microscópico de vírus e bactérias, nada a
apressava, dando a impressão de que o mundo, à sua volta, era uma entidade
invisível. Sentir-se-ia ela invisível para o mundo, perguntava-me. Conhecia nos
seus últimos dias de hospital, saía eu das consultas externas e de uma recente
depressão. Ela fumava no antro do edifício e aproveitei para pedir-lhe um
cigarro. Lançou-se de imediato numa longa conversa encadeando os temas numa
lógica imprecisa, deixava apenas pequenos espaços onde eu replicava sim, sim,
pois claro». In Ana Miranda, O Diabo é um Homem Bom, Editora Chiado, colecção
Viagens na Ficção, 2012, ISBN 978-989-697-552-4.
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