sábado, 7 de outubro de 2017

Os Inconsolados. Kazuo Ishiguro. «Embora murmurasse uma desculpa pela sua ausência, a sua conduta permaneceu durante algum tempo nitidamente descuidada»

Cortesia de wikipedia e jdact

«O motorista do táxi pareceu embaraçado ao ver que não havia ninguém, sequer um funcionário no balcão da recepção, aguardando-me. Atravessou a entrada deserta, quem sabe esperando encontrar algum empregado escondido atrás de uma das plantas ou de alguma poltrona. Acabou colocando as minhas malas no chão, ao lado das portas do elevador, e, murmurando alguma desculpa, despediu-se e partiu. A entrada era razoavelmente espaçosa, possibilitando que várias mesinhas fossem dispersas, sem dar a impressão de atravancar a passagem. Mas o tecto era baixo e arqueado, criando uma atmosfera ligeiramente claustrofóbica, e, apesar de o sol brilhar lá fora, a luz era sombria. Somente próximo ao balcão da recepção, um raio de sol incidia na parede, iluminando uma parte do revestimento de lambri escuro e uma pilha de revistas em alemão, francês e inglês. Além disso, vi um pequeno sino de prata sobre o balcão e estava prestes a sacudi-lo quando uma porta se abriu nalgum lugar atrás de mim e surgiu um jovem de uniforme. Boa tarde, senhor, disse com a voz cansada e, indo para trás do balcão, deu início ao registo.
Embora murmurasse uma desculpa pela sua ausência, a sua conduta permaneceu durante algum tempo nitidamente descuidada. Assim que falei o meu nome, entretanto, teve um sobressalto e aprumou-se. Senhor Ryder, sinto muito, não o reconheci. O Senhor Hoffman, o gerente, queria muito recebê-lo pessoalmente. Mas, infelizmente, neste exacto momento, teve de comparecer a uma reunião importante. Não tem problema. Terei muito prazer em conhecê-lo mais tarde. O rapaz apressou-se a preencher os formulários de registo, sem parar de resmungar a respeito de como o gerente ficaria aborrecido por não estar presente. Mencionou duas vezes o facto de os preparativos para a noite de quinta-feira o terem colocado sob uma pressão fora do comum, mantendo-o afastado do hotel mais do que o habitual. Eu apenas abanava a cabeça, sem forças para indagar sobre a natureza exacta da noite de quinta-feira.
Ah, o senhor Brodsky está-se saindo de modo esplêndido hoje, disse o recepcionista, animando-se. Realmente de modo esplêndido. De manhã, ensaiou a orquestra por quatro horas seguidas. Escute-o agora! Obstinado, aprimora o trabalho sozinho. Apontou para os fundos do vestíbulo. Só então percebi que um piano estava sendo tocado nalguma parte do prédio, quase inaudível, abafado pelo ruído do trânsito lá fora. Levantei a cabeça e escutei com mais atenção. Alguém tocava uma única frase curta, era do segundo movimento de Verticality, de Mullery, repetidamente, de um modo lento e absorto. Evidentemente, se o gerente estivesse aqui, dizia o rapaz, traria o senhor Brodsky para apresentá-lo. Mas não sei... Deu uma risada. Bem, não sei se devo perturbá-lo. Quando fica assim tão concentrado... Claro, claro. Fica para outra vez.
Se o gerente estivesse aqui..., calou-se e riu de novo. Então, inclinando-se para a frente, disse em voz baixa: sabia que alguns hóspedes tiveram a coragem de se queixar? De fecharmos a sala de estar sempre que o senhor Brodsky pede o piano? É incrível como certas pessoas pensam! Na verdade, ontem mesmo, dois hóspedes reclamaram com o senhor Hoffman. Mas pode estar certo de que foram rapidamente colocados nos seus devidos lugares. Estou certo que sim. Disse Brodsky? Reflecti sobre o nome, mas não me disse nada. Então, percebi que o recepcionista me observava com uma expressão intrigada e declarei rapidamente: sim, sim, terei muito prazer em conhecer o senhor Brodsky na hora oportuna. Se pelo menos o gerente estivesse aqui. Por favor, não se preocupe. Bem, mas se isso é tudo, gostaria de... É claro, senhor. Deve estar muito cansado depois de uma viagem tão longa. Esta é a sua chave. Gustav, que está ali o conduzirá ao quarto. Olhei para trás e vi que um carregador idoso esperava do outro lado do vestíbulo. Estava em frente ao elevador aberto, observando o seu interior com um ar absorto. Teve um sobressalto quando me aproximei. Então, pegou nas malas e entrou prontamente no elevador, logo atrás de mim». In Kazuo Ishiguro, Os Inconsolados, 1995, Editora Gradiva, ISBN 978-972-662-428-8.

Cortesia de EGradiva/JDACT