segunda-feira, 16 de outubro de 2017

Os Íntimos. Inês Pedrosa. «Gosto de simplificar. Os tumores têm essa característica: são simples. Benignos ou malignos. Matamo-los ou matam-nos»

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«(…) Porque detém o privilégio da razão, e não o usa como deve, é o que dizem. Racionalidade é o que demonstra um leão quando mata um veado para se alimentar, a si e à sua família. Trata dos seus interesses e da sua preservação. Um homem que se lança para dentro de um prédio em chamas para salvar desconhecidos, incluindo animais, se os houver, não age racionalmente. Observo mais razão do que sentimentos na acção de um gato. O social é incompatível com o racional, e a sociabilidade dos homens tem aumentado pelo menos tanto quanto o buraco do ozono. Os seres humanos são dependentes uns dos outros. Cada vez mais dependentes. Incluindo os melancólicos ensimesmados, como o meu amigo Pedro, que exibe uma armadura de desdém por qualquer multidão constituída por duas pessoas. Estende a idade pueril sobre as escarpas da sua biografia e pedala na sua bicicleta de rodinhas, imune às desventuras que cobrem as bermas do seu percurso absorto. Desde que se oficializou como fenómeno psicológico, a infância tornou-se duradoura. Substitui-se aos casamentos, que vêm com um arsenal de regras que já ninguém tem paciência para cumprir. É muito mais fácil sermos responsáveis pela qualidade da água e do ar e do solo e não sei mais o quê do que por um juramento de fidelidade. Criámos a era das responsabilidades impossíveis. Da bondade abstracta. As abstracções provocam-me um tédio avassalador.
Gosto de simplificar. Os tumores têm essa característica: são simples. Benignos ou malignos. Matamo-los ou matam-nos. Quanto mais jovem é a vítima, mais veloz é a propagação das células cancerosas. Os tumores mostram-nos as vantagens do envelhecimento. São praticamente a única coisa viva que respeita a idade e desacelera por causa dela. Nos organismos velhos, as células malignas são mais lentas. Essa é uma das belezas da oncologia. A outra é a simplicidade. A heurística médica manda-nos seguir a lei da navalha de William of Occam: quando várias soluções são possíveis, devemos escolher a mais simples. Palavras, conceitos e suposições não devem ser usados mais do que o estritamente necessário. Só um cérebro disciplinado na clareza pode chegar ao diagnóstico exacto. Os erros existirão sempre. São compensados pela gratidão dos doentes que sobrevivem. A forma como se entregam nas nossas mãos. Já só os doentes se sabem entregar, pôr toda a sua esperança e desespero à mercê de alguém.
Por isso pouco me importa que me chamem vaidoso. A vaidade que me atribuem é uma espécie de antecâmara da admiração que os meus pares me dedicam. Custa-lhes admitir que sou de uma competência extrema quando se trata de anunciar a morte aos meus pacientes. Dou prelecções sobre o assunto. Pagam-me para ensinar o melhor método de dizer a uma pessoa que o seu futuro acabou. Tenho aquilo a que a Leonor, ao princípio, chamava o dom da consolação. Ou a habilidade de apontar caminho para a aceitação, que é mais ou menos a mesma coisa. Os calhamaços de medicina não servem para isto. Não é uma questão de palavras. As palavras são sempre pedras, pedaços de fronteiras. Servem para separar, para rasgar. Podem ser plagiadas, decalcadas como passaportes falsos. Nunca enganam por completo. Nunca revelam a verdade toda. Mudam com o sotaque, a voz, a ordem na frase, o esforço. Gosto de ler em voz alta. Leio todos os dias à minha filha um capítulo de um livro. Sei que ela não me ouve. Ouço-me eu, a ler para ela. Comecei a ler-lhe desde que nasceu». In Inês Pedrosa, Os Íntimos, Publicações dom Quixote, 2010, ISBN 978-972-204-047-1.

Cortesia de PdomQuixote/JDACT