sexta-feira, 13 de outubro de 2017

Rosa Brava. José Manuel Saraiva. «Com um discurso apropriado às circunstâncias, pensava ela, talvez o conde se deixasse convencer e, resultado disso, revogasse a escolha do homem que haveria de lhe servir para marido»

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«Em 1368, dona. Leonor Teles Menezes, a mulher mais desejada do Reino, casa com o morgado de Pombeiro, João Lourenço Cunha. O matrimónio é imposto por seu tio, João Afonso Telo, conde de Barcelos. Mulher fora do tempo, aceita contrariada o casamento, que a melancolia da vida do campo não ajuda a ultrapassar. Por isso, decide abandonar o marido e parte para Lisboa, para gozar a vida de riqueza e luxúria que a Corte proporciona. Perversa e ambiciosa, não tem dificuldade em seduzir o jovem monarca, Fernando I, alcançando, desse modo, o poder que sempre desejou. Mas a nobreza, o clero e o povo não veem com bons olhos esta aliança de adultério com o rei. E menos ainda quando a formosa Leonor Teles se envolve com o conde Andeiro...

No mesmo dia em que Briolanja Mendes foi a sepultar, na campa rasa de um montezinho situado a pouco menos de meia légua das terras pertencentes à casa do conde de Barcelos, dona Leonor Teles Menezes cumpriu uma jura antiga: abandonou o marido e o filho, virou costas a Pombeiro e partiu para Lisboa. A decisão, tomada tempo antes de a velha Briolanja se extinguir, deixou João Afonso Telo, conde de Barcelos, louco de fúria não apenas por ver na aventura da jovem sobrinha uma traição infame ao marido e um acto de desamor pelo filho, mas também por considerar a fuga uma cruel avania contra quem, como ele, fora o único a substituir-se no afecto dos pais, Martim Afonso Telo Menezes, assassinado em Toledo pelo cruel Pedro de Castela, e dona Aldonça Vasconcelos, falecida prematuramente em consequência do rescaldo da Grande Peste que varreu um terço da população europeia. Logo no primeiro dia de orfandade da pequena Leonor, com apenas cinco anos, João Afonso Telo propusera-se conceder toda a protecção à criança, e até distingui-la dos irmãos, João Afonso Teles, Gonçalo Teles e Maria Teles, igualmente seus sobrinhos, nos benefícios resultantes da cobrança de rendas e distribuição de terras. A Leonor coube sempre o melhor quinhão.
O melhor e o pior, também, se se considerar a circunstância de o tio lhe ter destinado o fidalgo que ela menos queria para casar. É verdade que tinha feito já dezoito anos, idade mais do que razoável para celebrar matrimónio, ter filhos e dar continuidade à linhagem familiar a que pertencia. Mas o facto de não haver na região da Beira um cavaleiro à altura dos seus sonhos e das exigências que ela impunha a outrem, e a si mesma, eliminava à partida a hipótese de um casamento admirável. Leonor Teles sempre quis um homem encantador, um macho cujo perfil correspondesse à sua extraordinária beleza. Só que na Beira a possibilidade de escolha do homem perfeito, que ela via ou inventava em desvairados sonhos, era difícil, se não mesmo improvável. Por isso, e porque jamais seria capaz de contrariar a vontade do tio, quanto mais não fosse por respeito à idade e ao facto de ele ter sido armado cavaleiro pelo rei Pedro de Portugal numa cerimónia pública em que foram gastas avultadas somas em círios e tochas, dona Leonor começou por aceitar, no silêncio da renúncia, a oferta para aconchego matrimonial de um fidalgo de muitos bens, filho de Martim Lourenço Cunha, primeiro senhor de Pombeiro, e de dona Maria Anes Briteiros.
João Lourenço Cunha, assim se chamava o futuro marido de Leonor Teles, era um homem pouco mais velho do que ela, de figura medíocre, estatura abaixo da média, volumoso de rosto e de tronco, ambos assimétricos, de cabelo negro, quase sempre desalinhado, e com a pele muito morena. Mas pior que o aspecto físico do fidalgo, que até às pu… beirãs e transmontanas chegava a suscitar nojo e desconforto, eram a estupidez e a cobardia que ela mais detestava nele. Certo dia, já depois de realizados os competentes esponsais, acordada a soma do dote e lavrada a escritura do acontecimento, a jovem pensou falar ao tio para lhe confessar o seu total desinteresse no brinde que ele lhe destinara e, consequentemente, abdicar de todos os benefícios resultantes do consórcio imposto. E chegou mesmo a decorar duas ou três frases fortes, comoventes, com base na eterna ideia de que o amor prevalece sobre todas as coisas materiais da vida, pelo que, em homenagem a esse princípio que habitava as regiões mais fundas de si mesma, melhor seria desfazer o negócio matrimonial com João Lourenço Cunha, senhor do morgado de Pombeiro, e esperar por outra oportunidade. Com um discurso apropriado às circunstâncias, pensava ela, talvez o conde se deixasse convencer e, resultado disso, revogasse a escolha do homem que haveria de lhe servir para marido. Mas João Afonso Telo não era pessoa talhada para mudar de ideias, muito menos para ceder a pressões de uma mulher, menos ainda para se amoldar a conceitos tão modernos quanto os do amor e da beleza, sobre os quais as açafatas da sua pequena corte discorriam regularmente. Só entre elas e em segredo, diga-se». In José Manuel Saraiva, Rosa Brava, Oficina do Livro, 2005, ISBN 978-989-555-113-2.

Cortesia de OdoLivro/JDACT