A plenitude da existência
«(…) E, de certa forma, juvenis. O café arrefeceu
na minha chávena, intocado. Sentia-me por demais tenso com a presença de
Augusto e com a proximidade de Esther, que devia estar então deitada na cama,
descansando, talvez pensando na criança que perdera, quiçá, pensando em mim,
julgando-me mais magro, ou mais feio, ou mais pálido. Talvez tivesse notado os fios
brancos que havia na minha fronte. Naquele tempo eu tinha apenas vinte e seis
anos, mas o meu aspecto era o de um senhor encovado que vivia de roupão nos
subterrâneos. Augusto falou-me sobre as más condições daquele sobrado, onde o
vento penetrava nas frestas; o quarto de dormir era gelado; a janela da
cozinha, onde Esther passava a maior parte de seu tempo, havia muito que não
podia ser aberta e a sua mulher ficava sujeita aos ares esfumaçados de carvão,
andava a tossir; pairava no ar a poeira delectéria dos automóveis que passavam
na rua, o gás que escapava das máquinas dos navios, o odor fétido de urina dos
marinheiros e, onde havia marinheiros havia prostitutas e elas também exalavam
ares perniciosos; aquele lugar talvez tivesse sido a causa do aborto do filho
de Esther. Ele não falou, mas a proximidade do casal de tios, que moravam no
andar de baixo, estava certamente atrapalhando a intimidade de Augusto, o que
devia deixá-lo neurótico.
A sua asma voltava em acessos cada vez mais frequentes,
e nem água com açúcar e gotas de láudano de Sydenham, a tintura de ópio, ou
injecções subcutâneas de cloridrato de morfina, nem a inalação de éter
iodídrico ou da fumaça das cigarrilhas de Barrai ou dos vapores de papel
antiasmático, nem a tintura de Lobélia, nem as pílulas de tártaro istibiado de
Trouette, nem as lentículas antiasmáticas G. Chanteaud, nem o xarope de caracol
d'Henri Mure, nem os grânulos antimoniais de Papillaud, nem o xarope sulfuroso
Grosnier, nem o xarope de codeína de Berthé, nem o emético de ipecacuanha,
nenhum desses remédios largamente prescritos pelos médicos aos asmáticos e de
efeitos subtis evitava que Augusto tivesse as suas recaídas. O seu quarto não
era espaçoso, tampouco arejado, entretendo uma fraca luz diurna. Enfim, havia
um número imenso de inadequações naquele lugar; mas ao mesmo tempo me pareceu
vir a origem dos males de dentro da própria mente de Augusto, fruto da
insatisfação de seu génio, do seu orgulho abalado.
O casal ia mudar-se dali, os donos do sobrado
estavam voltando das férias e Augusto procurava outro lugar para habitarem. Ele
pretendia engravidar novamente a sua mulher, queria ter nove filhos, encher a
casa de rapazes, como fora a de seus pais, mas temia por algum risco e
consultava madame Morand. A francesa dizia-lhe que Esther poderia tentar de
novo, desde que se alimentasse de carnes gordas e papa de farinha. Esther
estava demasiado magra para gerar crianças, dissera Madame Morand. Enxúndia em torno
dos quadris protegia as crianças contra as frialdades. O formato da bacia de
Esther, assim como a sua pequena estatura, sugeria que o seu corpo não fora
feito para a maternidade.
Pensei em oferecer a Augusto a minha chácara em
Botafogo; embora fosse distante, era um lugar de ares limpos, silencioso,
Esther poderia caminhar pela areia da praia, respirando sal ou tomar banhos no
mar prescritos por um médico; poderia assistir às corridas de cavalos, às
regatas na baía; ou ver América Vespúcia escalando a pedra do Pão de Açúcar. Na
casa havia muitos quartos vagos, onde o casal se poderia acomodar. Tenho até
hoje a impressão de que ele se magoou por eu nunca lhe ter oferecido um pouso
em minha casa, mas como poderia eu dizer-lhe que morava com Camila? Muitas
vezes pensei em mandar Camila embora para poder acolher Augusto em minha casa,
mas nunca tive coragem. Cheguei perversamente a desejar que ela morresse, era a
única maneira de me libertar dela. De qualquer forma, Augusto jamais falou,
directa ou indirectamente, sobre este assunto.
Responsabilidades pesadas me abarrotam a alma, ele
disse, e, como um amálgama negro, engendram em mim uma tristeza malsinada. A
nomeaçãozinha no Ginásio Nacional veio sanear um pouco o meu abalado território
cerebral. Perguntei-lhe então por que não voltava para a Paraíba, e se ainda se
sentia vítima de uma desilusão na sua própria terra, como ele mesmo me dissera
ao partir, após perder a sua queda-de-braço com o Joque. Ele reflectiu
longamente, tão longamente que se perdeu nos seus pensamentos e se esqueceu da
minha pergunta, que ficou sem resposta. Mas eu sabia a resposta. Além de ter um
inabalável senso de justiça, Augusto queria ser tratado como o filho dilecto,
mesmo fora de casa, mesmo longe do engenho, mesmo por quem não era seu pai ou
sua mãe. Castigava com a sua ausência os que não o cortejavam, como se fosse a
pior das punições. E era. Quem um dia vivera perto de Augusto sofria a sua
falta. A Paraíba tornou-se o fim do mundo após a partida de Augusto. Poucas
semanas depois de me despedir dele no porto em Cabedelo, peguei o mesmo vapor e
vim morar no Rio de Janeiro». In Ana Miranda, A Última Quimera, Companhia
das Letras, 1995, ISBN 857-164-454-3.
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