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Ou mesmo antes: lia para ela através
da barriga da mãe. Leio-lhe os livros de que ela mais gostava: A Sereiazinha, A Rainha das Nevese, A Menina dos Fósforos, de Andersen. Ou O Jardim
Misterioso e
A Princesinha de Frances Burnett. Ou A Menina do Mar e O Rapaz de Bronze de Sophia de Mello Breyner. Tantas
vezes adormeceu antes que eu terminasse. Dou-me bem com as palavras, porque
lhes conheço o antídoto: a música. Componho. Sei pôr a música na letra. É isso
que me invejam: a melodia. Canto enquanto caminho debaixo da chuva. Gosto da
chuva morna de Lisboa, do modo como ela se alia ao vento para combater os seus
infiéis, virando guarda-chuvas, fazendo com que as pessoas sejam obrigadas a
dançar. Os portugueses, de um modo geral, não gostam de dançar. Mesmo os que
dançam, não chegam a desconcentrar-se o suficiente do corpo para poderem
levitar. Temem o ridículo. Olham demasiado uns para os outros. O vento de
Lisboa ri-se da compostura dos humanos. O vento de Lisboa ri-se no meio do
choro da chuva. Foi com ele que aprendi a rir; rio-me porque as minhas mãos
salvam, rio-me porque nunca sou eu quem morre, rio-me porque nunca tenho a
culpa da morte dos que me morrem nas mãos, já que o cancro pertence ainda à
categoria do incurável. O riso brilha mais rodeado pelo seu reverso, o riso
brilha ainda mais quando é secreto, como o meu. Digam o que disserem, a luz
de Lisboa só é especial quando chove. Com sol, qualquer cidade é bonita, é como
a juventude nas mulheres. Difícil é manter o halo da beleza quando a cinza
cobre tudo. É esta a dificuldade que Lisboa ultrapassa, como se nada fosse. Canto
a sensação do dever cumprido. Canto porque a música não tem segredos para mim.
Se tivesse uma grande voz, teria sido só mais um grande cantor. Um canário
adestrado, às ordens da populaça. Demorei décadas a construir a minha voz. Um
fio de voz, que sabe substituir a amplitude pela densidade. As mulheres
dizem-me que a minha voz vem melhorando com a idade. É verdade, mas finjo que
não acredito, digo-lhes que é uma ilusão simpática dos seus ouvidos. As
mulheres gostam que tudo se relacione com elas. As mulheres gostam que tudo se relacione. Como se não pudessem
existir sem relações. Lisboa é muito mulher nesse aspecto: nunca existe sol ou
chuva sem vento, nunca existe a beleza pura, sem uma prega humana, um pedaço de
lixo a voar, nunca existe uma rua perfeita sem uma casa apodrecida cintilando
algures no meio dela como um fio de sangue. É também por isso que gosto tanto
de ser homem. Os cabelos brancos favorecem-me. A capacidade de separar a doença
da pessoa que a possui joga a meu favor. Ajuda-me a ser melhor médico.
Hoje consegui salvar um burlão milionário, coleccionador de relógios de luxo,
falências fraudulentas e cargos públicos. Hoje vinguei-me generosamente da
rapariga que matou o meu coração de rapazinho tonto. Hoje consegui convencer
uma jovem nadadora de que não vale a pena sacrificar-se a tentar melhorar os
tempos, porque não lhe resta mais do que um ano de vida. Disse-lhe que
aproveitasse para realizar outros sonhos.
Respondeu-me que não tem outros sonhos. Disse-lhe que tinha
agora a oportunidade de aprender a sonhar. Disse-lhe que viajasse. Que
namorasse. Que cantasse. Disse-lhe que tem uma voz bonita. Cantei com ela. A
canção resultou. Resulta sempre. As mulheres gostam de canções. Música e letra.
Relação. O barulho das vozes dos amigos sossega-me. Não o que eles dizem. Às
vezes nem os ouço. Não é para nos ouvirmos que nos encontramos, apenas para
estarmos juntos. Cada um de nós é uma trave mestra da casa que somos todos
juntos. Augusto, Guilherme, Filipe, Pedro e eu. Bichos iguais a mim, familiares
e contraditórios. Conhecemo-nos há décadas. Nunca entendemos o futuro como uma
viagem marcada a um lugar conhecido. É nisso que somos iguais. Repudiamos a
filosofia turística que se foi tornando esmagadora neste início de milénio.
Gostamos muito de mulheres, o que faz de nós uns bárbaros, agora que as
mulheres não podem ser admiradas como enigma e maravilha conjunta. Cada um por
si e um minuto de televisão para todos. Somos libertários e conservadores,
cavalheiros e carroceiros, apreciamos um sentido de tribo que já não se usa nem
se defende, a não ser forrado de penas e cercado por cubatas. Sabemos
destrinçar o bem do mal, separar as espinhas de uma cabeça de peixe, dizer se
um vinho presta só pela cor e pelo cheiro, chegar ao osso de um leitão.
Guiamo-nos por saberes arcaicos sem nos rendermos ao engodo do arcaísmo que
encandeia a era em que nos coube nascer. Gozamos o privilégio de existir num
país amestrado pela liberdade, embora cerimonioso e parco com ela». In Inês Pedrosa, Os Íntimos, Publicações dom Quixote, 2010, ISBN 978-972-204-047-1.
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