«(…)
Apareciam sempre juntos e nunca demoravam o olhar
sobre uma mulher. Falavam de pintura, literatura, viagens, aborreciam a
política e os negócios. A combinação entre esses interesses tão raros nos
homens do tempo e a vossa suave indiferença às afectações da beleza feminina
tornava-vos irresistíveis. Criava-se um zumbido abrasador à vossa entrada, as
raparigas apertavam os pulsos umas às outras e segredavam: olha o sol e a lua.
Tu, meu querido António, eras a lua intrigante, apesar do teu cabelo aloirado e
do teu passo bem mais decidido do que o do Pedro. Ele era o sol de melena
escura que sorria continuamente só para encandear. Havia também uma espécie de
esplendor circulando em torno dos dois
que se extinguia quando se olhava para cada um de vós, individualmente. Tu
tinhas para mim uma cintilação própria, António, irradiavas uma luz turva,
arroxeada, que me sacudia como uma onda de febre. Seguia os teus passos
mecanicamente, enquanto dançávamos. Não conseguia ouvir a música; quase
desmaiava de embaraço e prazer escutando a batida do sangue, atroadora,
hipnótica, nunca soube se do teu se do meu coração. Ninguém antes te vira
dançar. As raparigas rodeavam-me, em enxames, perguntando que bruxedo te fizera
eu. As mais afoitas delas, segundo me contaram, tinham tentado vezes sem conta
rodopiar nos teus braços ou nos do Pedro, em vão. Cansei-me de vez das
conversas de raparigas, nunca tive uma melhor amiga. A cumplicidade de condição
parecia-me quase vergonhosa, conhecia-as demasiado bem do colégio, onde a minha
mãe me internara durante cinco anos para me instruir e disciplinar, à maneira
inglesa que herdara dos pais dela.
Creio
que nunca me recompus dos risinhos da Vera no refeitório, antes do Pai Nosso da
manhã, sonhei que estava na cama com o Salazar, ai, meninas, acho que estou a
precisar de me casar. Quase todas recebiam
cartas de amor com assinaturas femininas, minha estremosa amiga, olha esta
noite para a lua às nove e meia que eu vou estar a olhar também. Tua muito
saudosa Alexandra, e as freiras que tudo liam não estranhavam estes arroubos
entre meninas, nunca lhes ocorria que eram os meninos do Colégio Militar quem
escrevia as cartas assinadas por Alexandras e Paulas e Júlias. Fardas, as
pessoas apaixonavam-se umas pelas outras através do interdito das fardas. Eu
tinha um pai morto cheio de condecorações no peito, um pai que morrera sem me
ver, em 1917, a bem do futuro de uma Europa inexistente. Tu vestias linho
branco ou flanela cinzenta, substituías quase sempre a gravata por lenços de
seda que me punham tonta, sôfrega do teu pescoço alto de rapaz. Ninguém sabia
bem de que vivias, viajavas muito, negócios, dizias, e mudavas rapidamente de
assunto. A minha mãe desvanecia-se com isso a que chamava pudor, um noivo que
se apresentava de chaperon e não exibia os seus dotes profissionais era
um prodígio. Nem percebo o que é que um rapaz tão exquisit viu em ti, disse-me
ela, uma vez, no tom de brincadeira que usava para as verdades mais sentidas.
Arranjava sempre maneira de meter uma ou duas palavras em inglês em cada frase, e exquisit era
uma das suas favoritas. No dia do nosso casamento passou a tratar-te por tu e a
dar-te abraços maternais. Perguntou-te se estavas mesmo disposto a fazer feliz this
little lady e tu respondeste-lhe em alemão. Se fosse eu, chamar-me-ia
atrevida, e havia de amuar de humilhação. A minha frágil mãe não admitia que o
saber alheio a suplantasse, e, aliás, garantiu que eu lhe ficasse sempre atrás.
Dá cá isso, eu faço, tu não és capaz. O estribilho repetia-se sempre que eu
tentava fazer alguma coisa nova; foi quase à revelia dela que aprendi a tocar
piano, larga isso, criança, ainda me desafinas o piano, julgas que podes tapar
a tua falta de técnica com a fúria, para ela a fúria era uma prerrogativa de
criadores. Já estávamos casados há vários meses quando tu disseste: você é tão
intensa, Jennifer, nunca supus que uma mulher pudesse ter tanta intensidade.
Foi talvez o maior elogio que recebi de ti, e as hostilidades entre mim e a
minha mãe terminaram nesse instante. A minha fúria era afinal um dom, a virtude
que te levara a escolher-me como única mulher da tua vida, herdeira do teu
nome, senhora de tudo o que era teu.
O
Pedro gostava de me escovar os cabelos devagar antes de me fazer as tranças, tu
querias ver-me sempre de tranças e
laços. Nas repetidas escapadelas do Pedro eu subia a bainha aos vestidos
brancos de bordado inglês, punha soquetes e aninhava-me ao teu colo, tu
acariciavas-me o rosto, as mãos, as pernas. Uma vez chegaste a deitar-me no chão
e encheste-me o peito de dentadas e lágrimas, estiveste quase a possuir-me e
depois pediste desculpa, eu disse-te vem para dentro de mim, não tenhas medo, e
tu disseste: não posso, meu anjo. Não seria justo para si. Eu sou dele,
Jennifer. Se quiser, abandone-me. O abandono não é um acto de vontade mas uma
consequência do esquecimento, meu amor. Se amasses outra mulher, o meu orgulho
traído encontraria forças para deitar pazadas de terra sobre o buraco escuro do
meu peito. Mas o teu amor proibido empurrava-te para o limbo trágico onde o meu
amor por ti estava afinal condenado a viver. Nem por um segundo me ocorreu
desfazer o nosso casamento. No entanto, preciso de te dizer que existiu mais do
que pura paixão e livre entendimento na minha decisão de permanecer contigo
para sempre. Houve também altivez, querido António. Não suportaria o desolado
desprezo da minha mãe, nem o riso das zumbidoras. A mágoa do teu desamor
tornava-me incapaz de encarar semelhantes afrontas.
A
pouco e pouco, desenvolvi a capacidade
de me cingir à felicidade essencial de ser a tua mulher. Tu, que nem sequer
olhavas para uma mulher, tinhas-me escolhido para viver ao teu lado uma vida
inteira. O sexo que eu desconhecia não podia roubar-me o êxtase desta aventura.
Permaneceria tua namorada, cúmplice do teu amante. Segundo a Camila, o amor
desesperado faz mal à pele, desfigura e amarelece-nos os contornos, mas
connosco nunca, António. O desespero punha-te o fulgor do oiro, acho mesmo que
te transfiguraste no dia em que a Camila apareceu. Como pudeste trair-me tanto,
Pedro? Choraste nos braços dele a noite inteira, aos poucos ele convenceu-te a
aceitá-la, ofereceu-ta entre pedidos de perdão e juras de amor. Assim me deste
a filha que me impediu de enlouquecer. Nesses anos em que o amor todo se
concentrava na feroz atracção dos corpos, podia-se viver uma vida só do sabor
de uns lábios. Eu, pelo menos, vivi». In Inês Pedrosa, Nas Tuas Mãos, Publicações
dom Quixote, colecção BIS, 2009, ISBN 978-989-660-000-6.
Cortesia
de PdomQuixote/JDACT