domingo, 15 de outubro de 2017

Nas Tuas Mãos Inês Pedrosa. «Segundo a Camila, o amor desesperado faz mal à pele, desfigura e amarelece-nos os contornos, mas connosco nunca, António»

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«(…) Apareciam sempre juntos e nunca demoravam o olhar sobre uma mulher. Falavam de pintura, literatura, viagens, aborreciam a política e os negócios. A combinação entre esses interesses tão raros nos homens do tempo e a vossa suave indiferença às afectações da beleza feminina tornava-vos irresistíveis. Criava-se um zumbido abrasador à vossa entrada, as raparigas apertavam os pulsos umas às outras e segredavam: olha o sol e a lua. Tu, meu querido António, eras a lua intrigante, apesar do teu cabelo aloirado e do teu passo bem mais decidido do que o do Pedro. Ele era o sol de melena escura que sorria continuamente só para encandear. Havia também uma espécie de esplendor circulando em torno dos dois que se extinguia quando se olhava para cada um de vós, individualmente. Tu tinhas para mim uma cintilação própria, António, irradiavas uma luz turva, arroxeada, que me sacudia como uma onda de febre. Seguia os teus passos mecanicamente, enquanto dançávamos. Não conseguia ouvir a música; quase desmaiava de embaraço e prazer escutando a batida do sangue, atroadora, hipnótica, nunca soube se do teu se do meu coração. Ninguém antes te vira dançar. As raparigas rodeavam-me, em enxames, perguntando que bruxedo te fizera eu. As mais afoitas delas, segundo me contaram, tinham tentado vezes sem conta rodopiar nos teus braços ou nos do Pedro, em vão. Cansei-me de vez das conversas de raparigas, nunca tive uma melhor amiga. A cumplicidade de condição parecia-me quase vergonhosa, conhecia-as demasiado bem do colégio, onde a minha mãe me internara durante cinco anos para me instruir e disciplinar, à maneira inglesa que herdara dos pais dela.
Creio que nunca me recompus dos risinhos da Vera no refeitório, antes do Pai Nosso da manhã, sonhei que estava na cama com o Salazar, ai, meninas, acho que estou a precisar de me casar. Quase todas recebiam cartas de amor com assinaturas femininas, minha estremosa amiga, olha esta noite para a lua às nove e meia que eu vou estar a olhar também. Tua muito saudosa Alexandra, e as freiras que tudo liam não estranhavam estes arroubos entre meninas, nunca lhes ocorria que eram os meninos do Colégio Militar quem escrevia as cartas assinadas por Alexandras e Paulas e Júlias. Fardas, as pessoas apaixonavam-se umas pelas outras através do interdito das fardas. Eu tinha um pai morto cheio de condecorações no peito, um pai que morrera sem me ver, em 1917, a bem do futuro de uma Europa inexistente. Tu vestias linho branco ou flanela cinzenta, substituías quase sempre a gravata por lenços de seda que me punham tonta, sôfrega do teu pescoço alto de rapaz. Ninguém sabia bem de que vivias, viajavas muito, negócios, dizias, e mudavas rapidamente de assunto. A minha mãe desvanecia-se com isso a que chamava pudor, um noivo que se apresentava de chaperon e não exibia os seus dotes profissionais era um prodígio. Nem percebo o que é que um rapaz tão exquisit viu em ti, disse-me ela, uma vez, no tom de brincadeira que usava para as verdades mais sentidas. Arranjava sempre maneira de meter uma ou duas palavras em inglês em cada frase, e exquisit era uma das suas favoritas. No dia do nosso casamento passou a tratar-te por tu e a dar-te abraços maternais. Perguntou-te se estavas mesmo disposto a fazer feliz this little lady e tu respondeste-lhe em alemão. Se fosse eu, chamar-me-ia atrevida, e havia de amuar de humilhação. A minha frágil mãe não admitia que o saber alheio a suplantasse, e, aliás, garantiu que eu lhe ficasse sempre atrás. Dá cá isso, eu faço, tu não és capaz. O estribilho repetia-se sempre que eu tentava fazer alguma coisa nova; foi quase à revelia dela que aprendi a tocar piano, larga isso, criança, ainda me desafinas o piano, julgas que podes tapar a tua falta de técnica com a fúria, para ela a fúria era uma prerrogativa de criadores. Já estávamos casados há vários meses quando tu disseste: você é tão intensa, Jennifer, nunca supus que uma mulher pudesse ter tanta intensidade. Foi talvez o maior elogio que recebi de ti, e as hostilidades entre mim e a minha mãe terminaram nesse instante. A minha fúria era afinal um dom, a virtude que te levara a escolher-me como única mulher da tua vida, herdeira do teu nome, senhora de tudo o que era teu.
O Pedro gostava de me escovar os cabelos devagar antes de me fazer as tranças, tu querias ver-me sempre de tranças e laços. Nas repetidas escapadelas do Pedro eu subia a bainha aos vestidos brancos de bordado inglês, punha soquetes e aninhava-me ao teu colo, tu acariciavas-me o rosto, as mãos, as pernas. Uma vez chegaste a deitar-me no chão e encheste-me o peito de dentadas e lágrimas, estiveste quase a possuir-me e depois pediste desculpa, eu disse-te vem para dentro de mim, não tenhas medo, e tu disseste: não posso, meu anjo. Não seria justo para si. Eu sou dele, Jennifer. Se quiser, abandone-me. O abandono não é um acto de vontade mas uma consequência do esquecimento, meu amor. Se amasses outra mulher, o meu orgulho traído encontraria forças para deitar pazadas de terra sobre o buraco escuro do meu peito. Mas o teu amor proibido empurrava-te para o limbo trágico onde o meu amor por ti estava afinal condenado a viver. Nem por um segundo me ocorreu desfazer o nosso casamento. No entanto, preciso de te dizer que existiu mais do que pura paixão e livre entendimento na minha decisão de permanecer contigo para sempre. Houve também altivez, querido António. Não suportaria o desolado desprezo da minha mãe, nem o riso das zumbidoras. A mágoa do teu desamor tornava-me incapaz de encarar semelhantes afrontas.
A pouco e pouco, desenvolvi a capacidade de me cingir à felicidade essencial de ser a tua mulher. Tu, que nem sequer olhavas para uma mulher, tinhas-me escolhido para viver ao teu lado uma vida inteira. O sexo que eu desconhecia não podia roubar-me o êxtase desta aventura. Permaneceria tua namorada, cúmplice do teu amante. Segundo a Camila, o amor desesperado faz mal à pele, desfigura e amarelece-nos os contornos, mas connosco nunca, António. O desespero punha-te o fulgor do oiro, acho mesmo que te transfiguraste no dia em que a Camila apareceu. Como pudeste trair-me tanto, Pedro? Choraste nos braços dele a noite inteira, aos poucos ele convenceu-te a aceitá-la, ofereceu-ta entre pedidos de perdão e juras de amor. Assim me deste a filha que me impediu de enlouquecer. Nesses anos em que o amor todo se concentrava na feroz atracção dos corpos, podia-se viver uma vida só do sabor de uns lábios. Eu, pelo menos, vivi». In Inês Pedrosa, Nas Tuas Mãos, Publicações dom Quixote, colecção BIS, 2009, ISBN 978-989-660-000-6.

Cortesia de PdomQuixote/JDACT