O
Mundo que eles Criaram. Uma Constelação Única
«(…)
Leonardo passaria 17 anos em Milão, e este seria o período mais feliz e produtivo
da sua vida. Embora tivesse demorado algum tempo até ser levado à presença de
Ludovico Sforza, ficou de boa vontade na cidade, aceitando inicialmente
encomendas em conjunto com os artistas florentinos irmãos De Predis. Leonardo
apreciava a atmosfera comercial mais descarada e mais vibrante da Milão
setentrional e enublada, depois daquela estufa do snobismo e da alta cultura de
Florença. E foi aqui que ele arranjou um ajudante de dez anos, a quem deu a
alcunha de Salai (traquina), cujos modos irreprimíveis e beleza de
adolescente a desabrochar acabariam por cativar o coração do seu mestre.
Leonardo comprava belas roupas para Salai, que lhe retribuía roubando-lhe o
dinheiro da bolsa. Os cadernos de apontamentos de Leonardo ficaram cheios de
referências a este pequeno demónio, a este mafarrico; a dada altura, exasperado,
descreve-o mesmo como ladrão, mentiroso, obstinado, ganancioso, mas no entanto,
ao mesmo tempo, os desenhos afectuosos que faz de Salai retratam um jovem
cativante de uma beleza excepcional.
De
maneira muito diferente, Leonardo sentiu-se também atraído pelo poderoso
Ludovico Sforza, mais velho do que ele apenas um ano. Ludovico, conhecido como Il
Moro (o Mouro) devido à sua pele escura, foi descrito pelo grande
historiador suíço do Renascimento Jacob Burckhardt como o tipo perfeito de
tirano, aludindo à mão firme com que governava Milão e ao seu desejo de transformar
a capital do ducado numa cidade do Renascimento. Retratos de Ludovico
mostram-no como uma figura bastante rechonchuda, quase sonolenta, mas esta
interpretação é desmentida pelos seus actos, que revelam um homem complexo,
enigmático. Quando o seu irmão mais velho, o duque Galeazzo Maria, foi
assassinado em 1494, o ducado passaria para as mãos do filho do duque, Gian Galeazzo,
então com oito anos, mas Il Moro usurpou o lugar do jovem sobrinho e
assumiu o poder como regente, governando de forma secreta a partir do extenso e
muralhado Castello Sforzesco, cuja silhueta sombria dominava a linha do
horizonte do norte da cidade.
Ludovico
escolheu como amante uma jovem de 14 anos, inteligente e atraente, Cecilia
Gallerani, e uma das primeiras encomendas importantes feitas por Ludovico a
Leonardo foi um retrato da jovem. Nele, Cecilia aparece senhora de si e casta
na sua beleza, segurando ao colo um arminho branco, símbolo da pureza. No
entanto, a maneira como os seus dedos compridos assentam na pele do animal,
acariciando-o, provoca um frémito de sugestão erótica. Depois de estar
sexualmente fascinado por Cecilia, Ludovico amou-a, e este retrato reflecte com
subtileza a nova posição da jovem na sua vida, como Ludovico teria sem dúvida
desejado. Leonardo estabeleceu como é evidente uma relação com Ludovico, mas
não tinha quaisquer ilusões acerca do seu senhor, comentando no seu caderno de apontamentos,
de maneira invulgarmente direta: a justiça do Mouro é tão negra como a sua pele.
Quando Leonardo começou a trabalhar para Ludovico, mudou-se para um apartamento
na Corte Vecchia (Corte Velha). Foi aí que o jovem herdeiro legítimo, Gian
Galeazzo, esteve de início sob prisão domiciliária, mas naquele momento já
havia sido transferido para uma residência fora de Milão, e o palácio estava
vazio a maior parte do tempo. O apartamento de Leonardo dava para um dos
grandes pátios interiores orlados de pórticos e ele tinha também à sua
disposição, como atelier, o vasto antigo salão de baile.
Leonardo
começou por ser contratado para produzir entretenimentos para Ludovico e a sua
corte. Tocava para eles no seu alaúde de prata, dava recitais de canto,
escrevia adivinhas e contava histórias. Para os grandes cortejos, fornecia
artefactos engenhosos destinados a surpreender e deliciar Ludovico e os seus
convidados, tais como estátuas de gelo, uma complexa mascarada com planetas em
movimento e espetaculares exibições de fogo de artifício». In Paul Strathern, O Artista, o
Filósofo e o Guerreiro, Da Vinci, Maquiavel e Bórgia e o Mundo que eles
Criaram, Clube do Autor, Lisboa, 2009, ISBN 978-989-724-010-2.
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