segunda-feira, 9 de outubro de 2017

Os Anos. Virgínia Woolf. «Era coisa de uma libra, não, de uma libra, oito xelins e seis pence, disse ela, resmungando alguma coisa sobre a lavandaria»

jdact

1880
«(…) Então houve um estalido na escada. Alguém bateu de leve, como que para avisá-los da sua presença. Mira imediatamente prendeu o cabelo outra vez, levantou-se, saiu e fechou a porta. O coronel recomeçou, na sua maneira metódica, a examinar a orelha do cão. Seria um eczema? Ou não? Olhou a marca vermelha, depositou o cachorrinho de pé na sua cesta e esperou. Não gostava nada daquele prolongado cochicho no patamar da escada. Por fim Mira voltou. Tinha um ar preocupado. E quando ficava preocupada, parecia mais velha. Começou a dar uma busca debaixo das almofadas e cobertas. Precisava da bolsa, disse. Onde teria ido parar? Naquela confusão de objectos, pensou o coronel, poderia estar em qualquer lugar. Era uma pobre bolsa murcha quando, afinal, ela a descobriu sob umas almofadas no canto do sofá. Virou-a de cabeça para baixo, sacudiu. Lencinhos, pedaços de papel, moedinhas de prata e de cobre caíram em profusão. Deveria haver uma libra, disse.
Estou certa de que a tinha uma ainda ontem, murmurou. Quanto?, perguntou o coronel. Era coisa de uma libra, não, de uma libra, oito xelins e seis pence, disse ela, resmungando alguma coisa sobre a lavandaria. O coronel tirou duas libras da sua bolsinha de ouro e deu-as a ela. Mira as levou e houve novos cochichos do lado de fora da porta. Lavandaria?, pensou o coronel, correndo os olhos pelo aposento. Uma pocilga. Mas sendo tão mais velho do que a mulher, não era o caso de lhe fazer perguntas sobre roupa suja. Ali estava ela outra vez. Veio ligeira pela sala, sentou-se no chão e descansou a cabeça contra os joelhos dele. O fogo recalcitrante, que de havia muito bruxuleava, extinguira-se àquela altura. Deixe estar, disse ele com impaciência, quando viu que ela pegara o atiçador. Deixe ficar assim, apagado. Mira largou o ferro. O cão ressonava. O realejo tocava na rua. A mão dele começou a sua viagem, para cima, para baixo, do pescoço dela para dentro, para fora da cabeleira farta. Naquela casa pequena, tão próxima das outras casas, anoitecia depressa. E as cortinas estavam cerradas a meio. Ele a puxou para perto, beijou-a na nuca. E a mão, a que perdera dois dedos, pôs-se de novo a remexer desajeitadamente onde o pescoço encontrava a espádua.
Uma rajada de chuva bateu na calçada, e as crianças, que tinham ficado a saltar num pé só para dentro e para fora dos seus cercados de giz, correram para casa. O velho menestrel de rua, que cambaleava ao longo do meio-fio com um boné de pescador airosamente posto bem para trás da cabeça, cantando: count your blessings/ Count your blessings, levantou a gola do casaco curto e refugiou-se sob o pórtico de um botequim, onde completou a sua injunção.
Então o sol voltou a brilhar. E secou o calçamento. Não está fervendo ainda, disse Milly Pargiter, examinando a chaleira. Estava sentada à mesa, a mesa redonda da sala de estar da frente, na casa de Abercorn Terrace. Nem de longe!, repetiu. A chaleira era antiquada, de cobre, com um desenho de rosas já quase apagado. Uma pequenina chama muito frágil subia e descia debaixo dela. A irmã de Milly Pargiter, delia, reclinada numa cadeira ao lado dela, também olhou o fogareiro e perguntou por perguntar, sem nenhum siso. Chaleira tem de ferver? Não que esperasse resposta, e Milly não lhe deu nenhuma. Ficaram a observar silenciosamente a pequena chama no seu pavio amarelo. Havia muitas xícaras e pires na mesa, como se outras pessoas fossem esperadas. Mas naquele momento estavam as duas sozinhas. A sala tinha excesso de mobília. Em frente delas havia um armário holandês de coleccionador, com porcelana azul nas prateleiras. O sol da tarde de Abril punha brilhantes aqui e ali no vidro. Sobre a lareira, o retrato de uma moça ruiva vestida de musselina branca, com uma cesta de flores no regaço, sorria para elas. Milly tirou um grampo do cabelo e começou a separar os fios do pavio grosso para aumentar a chama». In Virgínia Woolf, Os Anos, 1937, Relógio D'Água, 1992, ISBN-978-972-708-154-7.

Cortesia de Relógiod’Água/JDACT