«(…) Nessa noite, o mestre e o pequeno discípulo comeram em
silêncio. Pela primeira vez em muitos anos, Francesco Monterga compartilhava a sua
mesa com alguém além da sua própria sombra. Não se atreviam a olhar-se; seria
possível dizer que o velho mestre não sabia como se dirigir a um menino.
Pietro, por seu lado, tinha medo de importunar o seu novo tutor; comia tentando
fazer o menor barulho possível e não parava de mover nervosamente as pernas,
que pendiam da cadeira e não chegavam a tocar o chão. Gostaria de agradecer a
generosidade do mestre, por tê-lo tomado a seus cuidados, mas, diante do
silêncio de seu tutor, não se animava a dizer qualquer palavra. Até este momento,
Pietro nunca se havia questionado sobre a própria orfandade, não conhecia outro
lar além do Ospedale e não sabia exactamente o que era um pai.
E agora que tinha uma casa e, de alguma maneira, uma família, uma tristeza
desconhecida se instalou na sua garganta. Quando terminaram de comer, o pequeno
desceu da cadeira e recolheu os pratos, examinou a cozinha e, com os olhos,
procurou a pia para lavá-los. Sem levantar-se, Francesco Monterga apontou o
lugar. Sentado na sua cadeira, enquanto o menino lavava a louça, o mestre
florentino olhava o seu inesperado hóspede com uma mescla de estranheza e
satisfação. Quando terminou a sua tarefa, Pietro aproximou-se de seu tutor e perguntou-lhe
se precisava de mais alguma coisa. Francesco Monterga deu um meio sorriso e
balançou negativamente a cabeça. Impulsionado por uma espécie de inércia
incontrolável, o pequeno foi até o atelier e outra vez ficou a contemplar os tesouros
que abarrotavam as prateleiras. Respirou fundo, enchendo os pulmões com aquele
aroma feito da mistura de verniz, de pinho e de sementes usadas
para preparar óleos e resinas. Então a sua tristeza se dissolveu nos eflúvios
daquela mistura de perfumes até quase perder os sentidos. O mestre decidiu que
era hora de dormir e conduziu-o até o pequeno mezanino, que daquele momento em
diante seria o seu quarto.
Amanhã
teremos tempo para trabalhar, disse, e entregou ao menino um lápis com cabo de vidro. Pietro
dormiu com o lápis apertado entre as mãos, desejando que a manhã seguinte
chegasse o quanto antes. Quando acordou, teve medo de abrir os olhos e descobrir que tudo
aquilo havia sido apenas um sonho. Temia despertar e encontrar diante de si a
mesma paisagem: o tecto descascado do orfanato. Mas ali estava, na sua
mão, o lápis que Francesco Monterga lhe dera na noite anterior. Então abriu os
olhos e viu o céu radiante do outro lado da pequena janela do quarto.
Levantou-se num salto, vestiu-se tão rapidamente quanto pôde e desceu as escadas
correndo. No atelier, de pé, em frente ao cavalete, estava o seu mestre preparando uma
tela. Sem olhar, Francesco Monterga chamou a sua atenção, de modo amável
mas severo, de que aquelas não eram horas de começar o dia. Ele teria que se
acostumar a levantar antes do amanhecer. O pequeno Pietro abaixou a cabeça, e,
antes que pudesse pensar numa desculpa, o velho mestre disse-lhe que
tinham uma longa jornada de trabalho pela frente. Imediatamente, pegou num
frasco cheio de pincéis e colocou-o nas mãos do seu novo discípulo. O rosto de
Pietro iluminou-se. Finalmente, ia pintar como um verdadeiro artista, sob os
sábios cuidados de um mestre. Quando estava quase escolhendo um dos pincéis,
Francesco Monterga mostrou-lhe uma tina cheia de água castanha e ordenou: quero
que fiquem bem limpos, que não se veja nem um resto de tinta. Antes
de retomar o seu trabalho, o pintor apareceu novamente no vão da porta e
acrescentou: e cuidado para que não soltem um só pelo». In Federico Andahazi,
O Segredo dos Flamengos, L&PM Pocket, 2002, ISBN 978-852-541-357-4.
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