terça-feira, 31 de outubro de 2017

O Segredo dos Flamengos. Federico Andahazi. «Quando terminaram de comer, o pequeno desceu da cadeira e recolheu os pratos, examinou a cozinha e, com os olhos, procurou a pia para lavá-los»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Nessa noite, o mestre e o pequeno discípulo comeram em silêncio. Pela primeira vez em muitos anos, Francesco Monterga compartilhava a sua mesa com alguém além da sua própria sombra. Não se atreviam a olhar-se; seria possível dizer que o velho mestre não sabia como se dirigir a um menino. Pietro, por seu lado, tinha medo de importunar o seu novo tutor; comia tentando fazer o menor barulho possível e não parava de mover nervosamente as pernas, que pendiam da cadeira e não chegavam a tocar o chão. Gostaria de agradecer a generosidade do mestre, por tê-lo tomado a seus cuidados, mas, diante do silêncio de seu tutor, não se animava a dizer qualquer palavra. Até este momento, Pietro nunca se havia questionado sobre a própria orfandade, não conhecia outro lar além do Ospedale e não sabia exactamente o que era um pai. E agora que tinha uma casa e, de alguma maneira, uma família, uma tristeza desconhecida se instalou na sua garganta. Quando terminaram de comer, o pequeno desceu da cadeira e recolheu os pratos, examinou a cozinha e, com os olhos, procurou a pia para lavá-los. Sem levantar-se, Francesco Monterga apontou o lugar. Sentado na sua cadeira, enquanto o menino lavava a louça, o mestre florentino olhava o seu inesperado hóspede com uma mescla de estranheza e satisfação. Quando terminou a sua tarefa, Pietro aproximou-se de seu tutor e perguntou-lhe se precisava de mais alguma coisa. Francesco Monterga deu um meio sorriso e balançou negativamente a cabeça. Impulsionado por uma espécie de inércia incontrolável, o pequeno foi até o atelier e outra vez ficou a contemplar os tesouros que abarrotavam as prateleiras. Respirou fundo, enchendo os pulmões com aquele aroma feito da mistura de verniz, de pinho e de sementes usadas para preparar óleos e resinas. Então a sua tristeza se dissolveu nos eflúvios daquela mistura de perfumes até quase perder os sentidos. O mestre decidiu que era hora de dormir e conduziu-o até o pequeno mezanino, que daquele momento em diante seria o seu quarto.
Amanhã teremos tempo para trabalhar, disse, e entregou ao menino um lápis com cabo de vidro. Pietro dormiu com o lápis apertado entre as mãos, desejando que a manhã seguinte chegasse o quanto antes. Quando acordou, teve medo de abrir os olhos e descobrir que tudo aquilo havia sido apenas um sonho. Temia despertar e encontrar diante de si a mesma paisagem: o tecto descascado do orfanato. Mas ali estava, na sua mão, o lápis que Francesco Monterga lhe dera na noite anterior. Então abriu os olhos e viu o céu radiante do outro lado da pequena janela do quarto. Levantou-se num salto, vestiu-se tão rapidamente quanto pôde e desceu as escadas correndo. No atelier, de pé, em frente ao cavalete, estava o seu mestre preparando uma tela. Sem olhar, Francesco Monterga chamou a sua atenção, de modo amável mas severo, de que aquelas não eram horas de começar o dia. Ele teria que se acostumar a levantar antes do amanhecer. O pequeno Pietro abaixou a cabeça, e, antes que pudesse pensar numa desculpa, o velho mestre disse-lhe que tinham uma longa jornada de trabalho pela frente. Imediatamente, pegou num frasco cheio de pincéis e colocou-o nas mãos do seu novo discípulo. O rosto de Pietro iluminou-se. Finalmente, ia pintar como um verdadeiro artista, sob os sábios cuidados de um mestre. Quando estava quase escolhendo um dos pincéis, Francesco Monterga mostrou-lhe uma tina cheia de água castanha e ordenou: quero que fiquem bem limpos, que não se veja nem um resto de tinta. Antes de retomar o seu trabalho, o pintor apareceu novamente no vão da porta e acrescentou: e cuidado para que não soltem um só pelo». In Federico Andahazi, O Segredo dos Flamengos, L&PM Pocket, 2002, ISBN 978-852-541-357-4.

Cortesia de L&PM Pocket/JDACT