«(…) Dando graxa à mamã, disse
Hickey. Soltei os dedos que estavam cruzados na parte de trás do seu pescoço
branco e macio e afastei-me dela com acanhamento. O seu pensamento estava longe
dali, e as galinhas ainda não tinham comido. Algumas, vindas do pátio, estavam
a debicar no prato de Bull's-Eye, junto à porta das traseiras. Eu ouvia Bull's-Eye
a correr atrás delas e o bater das asas ao fugirem, cacarejando furiosamente. Está
uma peça em cena no salão da vila, patroa. Devia ir até lá, disse Hickey. Devia.
O tom de voz era um pouco sarcástico. Embora contasse com Hickey para tudo, por
vezes era áspera com ele. Estava a pensar. A pensar onde estaria ele? Se
chegaria a casa de ambulância ou num carro alugado em Belfast três dias antes,
sem estar pago? Subiria os degraus de pedra da porta das traseiras aos
tropeções, brandindo uma garrafa de uísque? Iria gritar, lutar, matá-la, ou
pedir desculpa? Apareceria à porta do corredor com um doido qualquer
embriagado, dizendo: mãe, apresento-te o meu melhor amigo, Harry. Acabo de lhe dar
o prado de treze acres, em troca do galgo mais bonito... Tudo isso já nos
acontecera tantas vezes que era um disparate esperar que o meu pai chegasse a
casa sóbrio. Saíra três dias antes, com sessenta libras no bolso para ir pagar
os impostos.
Sal, minha linda, disse Hickey,
agarrando numa pitada entre o polegar e o indicador e salpicando o meu ovo. Não,
Hickey, não faças isso. Nessa altura eu andava a fugir ao sal. Por presunção.
Achava que era muito adulto não usar sal nem açúcar. O que vou eu fazer, mãezinha?,
perguntou Hickey, aproveitando-se da desatenção dela para barrar o pão
generosamente com manteiga dos dois lados. Não é que a mãe fosse sovina com a
comida, mas Hickey estava a ficar tão gordo que não conseguia fazer o seu
trabalho. Vais até ao lameiro, acho eu, disse ela. A turfa está capaz de se
pisar e talvez não tenhamos outro dia bom. Talvez fosse melhor ele não ir para
tão longe, disse eu. Gostava que Hickey estivesse por perto quando o papá
voltasse para casa.
Ele pode estar um mês sem voltar,
disse ela. Os seus suspiros eram de partir o coração. Hickey pegou no boné que
estava no rebordo da janela e saiu para ir soltar as vacas. Tenho de dar de
comer às galinhas, disse a mamã, e tirou uma panela de sêmola do forno mais
baixo, onde ficara a cozer em lume brando toda a noite. Ela estava lá fora a triturar
a comida das galinhas na leitaria e eu preparei o almoço para levar para a
escola. Sacolejei a garrafa do óleo de fígado de bacalhau e do tónico Parrish, para
ela pensar que eu os tinha tomado. Depois voltei a pô-la no aparador, junto à
fileira de pratos Doulton. Eram uma prenda de casamento, mas nunca os
usávamos, não fosse o caso de se partirem. Havia contas amontoadas atrás deles.
Centenas de contas. As contas nunca davam preocupações ao papá, punha-as
simplesmente atrás dos pratos e esquecia-as.
Saí para apanhar os lilases.
Parando no degrau de pedra para espraiar o olhar pelos campos, senti, como
sempre acontecia, aquele ímpeto de liberdade e prazer, ao ver as árvores de
diversas espécies e as construções de pedra afastadas da casa, e os campos
muito verdes e tranquilos. Fora da cerca de arame havia uma nogueira, e sob a
sua copa campainhas, altas e intensamente azuis, uma gruta de flores
azul-celeste no meio dos blocos de calcário. O meu baloiço oscilava ao vento, e
as folhas no cimo de cada árvore agitavam-se ligeiramente». In
Edna O’Brien, Raparigas da Província, 1960, Relógio D’Água, 2010, ISBN
978-989-641-176-3.
Cortesia de RelógioD’Água/JDACT