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Como se pudesse falar em silêncio com o Francisco, baixa o olhar sobre a rua,
sobre o passeio onde faltam pedras: figuras irregulares de terra com a forma
das pedras que faltam: e levanta o olhar. No outro lado da rua, dois prédios
separados por terrenos onde crescem pedaços de tijolos, gargalos de garrafas
partidas e rodas enferrujadas de carros de passear bebés. Um pouco mais longe,
hortas de couves, cercadas por vedações feitas de latas enferrujadas. Um pouco
mais longe, a estrada onde, dia e noite, passam automóveis nas duas direcções.
E depois dessa estrada, Lisboa inteira. E depois de Lisboa, o mundo e o nosso
filho, o nosso menino. E, sobre tudo, em tudo, a manhã. Baixa-se no chão da
cozinha para apanhar uma blusa da Ana: golas redondas, bordadas: e duas molas.
A música de piano continua contínua a partir da telefonia. Começa a inclinar-se
sobre o parapeito e, de repente, ouve-se um estrondo na sala, uma derrocada, a
explosão de qualquer peso que se esmaga contra chão: vidros, madeira, ferro.
Ainda dentro desse momento, os gritos súbitos da íris. A minha mulher larga a
blusa da Ana e não fica a vê-la planar até ao passeio, porque vai a correr na
direcção da sala. A minha mulher conhece bem as diferenças entre os vários
tipos de choro da íris: quando faz uma birra, quando está apenas assustada ou
quando está mesmo aflita: por isso, corre o mais depressa que é capaz. Por
baixo dos gritos estridentes da íris, as batidas rápidas do coração da minha
mulher a aproximar-se. O seu corpo atravessa o corredor com os mesmos
movimentos de quando vai a andar, mas muito mais depressa, porque essa é a sua
maneira de correr. Era a nossa casa. A minha mulher sentava-se nos degraus das
escadas do quintal, passavam fins de tarde amenos do início de Agosto, e ficava
compenetrada a fazer malha. Fazia casaquinhos ou botinhas de lã para o nosso
filho. Faltava um mês para que nascesse e ela já lhe imaginava o tamanho dos
braços e o tamanho dos pézinhos. Às vezes, estendia as peças, meio tricotadas,
nas palmas das mãos e, nesses momentos, era como se visse os braços ou os pés
do nosso filho ainda por nascer.
Eu segurava a ponta da mangueira,
a água grossa, fresca, e acertava nos pés das árvores e das plantas. Havia o
cheiro fresco da terra a embeber a água. Havia uma aragem que nos serenava a
pele do rosto. Em instantes, lembrava-me de lhe contar alguma coisa. Ela
parava-se a ouvir-me. Pousava as agulhas e a malha sobre a barriga, ficava a
ouvir-me e, às vezes, a malha começava a mexer-se sozinha. Era o nosso
Francisco a dar pontapés dentro da barriga. Eu dizia: quando for grande, há-de
ser jogador de futebol. Mal eu sabia. Anos mais tarde, recordando-se dos pontapés
que, à noite, lhe desenhavam ângulos na pele da barriga redonda, a minha mulher
repetiu muitas vezes: o meu Francisco começou a treinar-se para corredor ainda
antes de nascer. Era de manhã que eu chegava à oficina. Abria o portão e o eco
das voltas da fechadura era natural nas paredes cobertas de serradura e de pó.
Com os primeiros passos das botas na terra da entrada, havia dois ou três
pardais que voavam entre as vigas do tecto e se escondiam nas sombras das
telhas. Quando estava bom tempo, abria as janelas sobre o pátio. No meu banco
de carpinteiro, as ferramentas estavam onde as tinha arrumado. O trabalho
esperava-me no ponto exacto onde, no dia anterior, tinha decidido parar. Era de
manhã e, quando segurava cada ferramenta pela primeira vez: o martelo, o formão,
o serrote: sentia na palma da mão o início ameno de mais um dia.
O meu tio chegava a meio da manhã.
Trazia as mesmas roupas da véspera: metade da camisa fora das calças, a fivela
do cinto desacertada com o botão. O olho esquerdo brilhava-lhe na cara por
lavar. Quando era criança, numa brincadeira, o meu tio tinha ficado cego do
olho direito. Ao chegar à oficina, o seu olho direito era a pálpebra mais lisa,
mais branca do que o resto da pele, assente sobre a órbita vazia. Tinha os lábios
secos e gretados. Os dentes sustinham uma película pastosa de vinho tinto.
Tinha sempre um sorriso infantil, sincero. Dizia-me bom dia. Eu não lhe dizia
nada. Ele esquecia-se e dizia-me bom dia outra vez. Então, tirava talvez um lenço
enrodilhado do bolso e assoava-se. Depois, saía para o pátio. Se eu estava a
medir ou a marcar alguma peça, ouvia o arco da sua urina cair sobre o chão de cascas
de pinheiro. Depois de tempo e passos que se aproximavam, voltava e lavava
talvez a cara sob a água fria da torneira aberta. A água misturava-se com a
serradura do chão. Com as sobrancelhas despenteadas, sorria e, finalmente,
aproximava-se do banco onde o aguardavam as ferramentas desarrumadas num monte».
In
José Luís Peixoto, Cemitério de Pianos, 2006, Bertrand Editora, Quetzal
Editores, 2009, ISBN 978-972-564-823-0.
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