sexta-feira, 13 de outubro de 2017

Cemitério de Pianos. José Luís Peixoto. «Ao mesmo tempo, usava as mãos limpas, lisas, brancas, e os dedos esguios, bem tratados, as unhas ligeiramente compridas, para fazer gestos e, assim, esculpir no ar…»

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«(…) As manhãs passavam com o meu tio a contar histórias que, às vezes, repetia e que, às vezes, não terminava; passavam sob as histórias que o meu tio contava e que eu, às vezes, não ouvia. Enquanto trabalhava: martelos a bater, serras a atravessarem ripas, limas a limar, lixas a alisarem tábuas: deixava de ouvir o meu tio para me fixar nos sons da cidade que entravam pelas janelas e pela porta do pátio, como se chegassem de muito longe: pregões, vozes perdidas, campainhas de bicicletas. Foi o meu pai que me deixou a oficina. Em certos dias, quando vinha do mercado de mão dada com a minha mãe, pedia-lhe: vamos à minha oficina. Se alguém me ouvia e entendia, ria-se por eu ser tão pequeno e falar assim. A minha mãe não se ria porque tinha sido ela que me ensinara a utilizar essas palavras. O meu pai morreu longe da minha mãe, exausto, no mesmo dia em que eu nasci.
Durante toda a minha infância, em certos serões, a minha mãe aquecia uma chocolateira de água e pedia-me para ir ao quintal buscar uma folha de limoeiro. O nosso limoeiro tinha folhas grandes e grossas, custosas de desprender-se e que faziam barulho no momento em que as arrancava dos ramos mais baixos. A minha mãe lavava a folha e mergulhava-a dentro da água a ferver para fazer o nosso chá. Era nesse momento que trazia para o centro da mesa um embrulho de papel pardo que, lentamente, sob o meu olhar, abria. Eram dois bolos que tinha comprado na padaria e que, com a ponta da faca, cortava ao meio. Eu subia para cima de um banco e tirava duas canecas do armário. Sentávamo-nos à mesa, mãe e filho, a comer as nossas metades de bolo e a beber chá. A seguir, a minha mãe contava histórias que terminavam sempre com o riso do meu pai. A minha mãe quase se ria ao explicar o riso do meu pai.
Depois, a minha mãe dizia que o meu pai era muito valioso. Havia então uma pausa. Silêncio. E a minha mãe contava-me como, de certeza absoluta, o meu pai se orgulharia de saber que eu iria tomar conta da oficina. Era nesse momento que falava da minha oficina: a tua oficina, dizia, séria, a olhar-me nos olhos. A voz da minha mãe era frágil e segura, era suave, era firme. A oficina esteve parada até ao dia em que o meu tio se propôs tratar dela, pagando a pequena renda com que a minha mãe se governava. Havia meses em que o meu tio, por desorientação ou por causa da bebida, se atrasava a pagar. A minha mãe contava com isso e, para essas ocasiões, poupava algum dinheiro no fundo da caixa da costura. Foram poucas as vezes em que, depois de todos os prazos, determinada, teve de fazer as duas ruas que separavam a nossa casa da oficina para reclamar a renda.
Quando o meu tio a via entrar, envergonhava-se, baixava o rosto, pedia-lhe muitas desculpas sentidas e, quase sempre, lacrimejava. Comecei a trabalhar com o meu tio poucos dias depois de fazer doze anos. Nesses tempos de aprendiz, tentava compreender aquilo que me mandava fazer entre a torrente de histórias incompreensíveis que contava. Aquilo que o meu tio tinha para me ensinar era o pouco que conseguira aprender ao ver o seu pai a trabalhar e aquilo que aprendera com os seus próprios erros e tentativas. Com catorze anos, trabalhava já com mais perfeição do que ele e ensinava-lhe coisas que ele nunca soubera ou que esquecera. Tinha catorze anos quando a minha mãe ficou doente. Numa semana, conheciam-se-lhe todos os ossos e todas as veias do corpo. A sua pele tornou-se amarelada. O seu olhar ficava parado em pontos. Supliquei-lhe que não morresse. Pedi-lhe por tudo. Mas, passadas algumas semanas, morreu.
Foi como se tivesse esperado apenas por ver-me criado. Durante as semanas seguintes, o meu tio ficou em silêncio. Numa manhã, começou a contar uma história que nunca mais terminou e o tempo continuou a passar. Influído com as histórias que contava para si próprio, raramente o meu tio ouvia as pessoas que chegavam, com passos pesados na terra da entrada, e que, a qualquer hora, vinham encomendar trabalhos ou ver se estavam prontos os trabalhos que tinham encomendado. Por isso, surpreendia-se muito quando as via surgir na porta da carpintaria. Eufórico, rodeava-as a falar alto e a sorrir. Essas pessoas, mesmo que não o conhecessem já, ignoravam-no e dirigiam-se a mim. Foi exactamente isso que aconteceu na manhã em que chegou o italiano. O bigode fino dançava-lhe sobre os lábios ao ritmo das palavras que dizia. Enquanto falava, o bigode, fino, engraxado, assumia as formas mais diversas: um til, uma linha, um ângulo recto, um arco.
Ao mesmo tempo, usava as mãos limpas, lisas, brancas, e os dedos esguios, bem tratados, as unhas ligeiramente compridas, para fazer gestos e, assim, esculpir no ar diante de si toda a espécie de formas: um cavalo nobre com arreios de prata, salões com gravuras no tecto, um piano. Em momentos repentinos, parava-se a investigar se o tínhamos entendido e acertava os botões de punho com a ponta dos dedos ou depenicava as golas brilhantes do fraque. Decidia então que não o tínhamos entendido e continuava. Mas tínhamos entendido tudo. Talvez tudo. Desde que o italiano começara a falar que a voz do meu tio foi esmorecendo, mais fraca, mais fraca, como se descesse escadas, até que se calou completamente e, com o olho esquerdo arregalado, ficou apenas a ouvir com interesse vivo e sincero». In José Luís Peixoto, Cemitério de Pianos, 2006, Bertrand Editora, Quetzal Editores, 2009, ISBN 978-972-564-823-0.

Cortesia de QuetzalE/JDACT