«(…) Briolanja Mendes não
respondeu logo. Fez uma pausa, pôs-se de pé, persignou-se duas vezes, e só
depois disse: deixe-me rezar primeiro, senhora. Com as mãos recolhidas no
balandrau e juntas ao peito, Leonor Teles ficou a observar a velha a dirigir-se
ao genuflexório colocado sob o pequeno santuário numa das paredes do
compartimento para rezar às imagens de vários santos o páter-nóster, o credo, a
salvé-rainha e a avé-maria. Lá estavam, lado a lado, numa espécie de altar iluminado
por lâmpadas votivas, as imagens de São Geraldo de Braga, Santa Maria do Bouro,
Santa Maria do Pombeiro, São Salvador de Valongo, Santa Maria do Lago, São Servando
e, até mesmo, São Clemenço do Mar. Com tantas rezas, difícil seria que nenhuma
das santificadas criaturas deixasse de iluminar a inteligência de Briolanja em
ordem a prestar-lhe toda a capacidade de aconselhamento. Era, aliás, nessa graça
divina que assentava a esperança de Leonor Teles, por tanto acreditar que só
mesmo Briolanja seria capaz de lhe indicar a solução definitiva do problema.
De joelhos no chão, com a cabeça
entalada entre as mãos roxas do frio e rugosas da idade, Briolanja Mendes
rezava, oração atrás de oração, num ritual só comparável ao do Advento ou da
Quaresma. Uma vez concluídas as numerosas preces, pôs-se de pé, com uma mão
massajou os joelhos para aliviar a dor e, virando-se para a jovem dama que
esperava dela um bom conselho, apenas prometeu: senhora, se não se importa
digo-lhe amanhã o que há-de fazer. Preciso ainda de consultar as estrelas... Consulta-as
então e diz-me depois o que te disserem. Só junto à porta as duas mulheres se
despediram: uma foi para a sala; a outra, para o sótão. Na sala comum da casa
encontravam-se já prontos para a ceia João Afonso Telo, alguns fidalgos, um
tabelião, o alcaide da terra e dois amigos do conde. À excepção do dono da
casa, que ocupava a cátedra sobre cujo pousadouro podia observar-se uma
almofada de veludo castanho, os restantes, sentados no chão, em cima de
tapetes, levantaram-se imediatamente à entrada de Leonor Teles. Por quem sois!,
exclamou ela com um sorriso forçado e a voz ténue. Estiveste a chorar?, perguntou
João Afonso Telo, ao ver-lhe as pálpebras inchadas e vermelhas.
Não, meu estimado tio, foi um
cisco que me entrou para os olhos, e de os esfregar fiquei neste estado. Depois,
temendo que o conde voltasse a interrogá-la sobre o assunto, pediu licença para
se retirar e desculpas por não os acompanhar na refeição. Aí todos assentiram e
se curvaram ligeiramente, sobretudo quando ela abandonou a sala, excepto o
alcaide que, esquecendo-se das regras que impõem uma espessa cortina de
respeito e de pudor, ficou estático, perturbado, a olhar para o traseiro da
jovem até ela desaparecer do umbral da porta. Há algum problema?, perguntou
sorridente João Afonso Telo, despertando o alcaide da sua aparente indiligência.
Nenhum, senhor conde, nenhum..., respondeu ele titubeante, enrubescido, incapaz
de disfarçar a vergonha pela exibição da sua grosseira atitude.
Leonor Teles Menezes era, de
facto, uma mulher bela. Na perfeição do rosto, sob os olhos de um azul intenso,
dispersavam-se pequeníssimas sardas, pouco mais escuras do que a cor da pele
que lhe cobria o corpo. E os cabelos louros, quase sempre descaídos e entrançados
até ao cume dos seios, completavam o retrato da mulher mais cobiçada pelos
homens da Beira e de Trás-os-Montes. Lá, decerto, não havia nenhum, da nobreza,
do clero, ou até mesmo do povo, que nunca tivesse desejado por um breve instante,
quanto mais não fosse no delírio dos sonhos, deitar-se uma vez com aquela
mulher formosa e incendiária. Todos gostariam de a ter; nenhum, porém,
conseguiria alcançá-la. Excepto o prometido marido, João Lourenço, se
entretanto o conde de Barcelos não se dispusesse a capitular...
Nessa noite, Leonor Teles mal pôde
dormir, não só pela ansiedade, tristeza e desespero que lhe habitavam a alma,
mas também pelas recordações, boas e más, que se iam apoderando de si numa
cavalgada difícil de conter. Lembrava-se da infância, sempre bem cuidada pelo
tio, mas principalmente protegida pela ternura da ama, Briolanja Mendes, que, àquela
hora, no sótão do solar, estaria a consultar as estrelas para delas colher a
resposta às suas inquietações. Lembrava-se também da perturbada adolescência, sobretudo
do período, embora não muito longo, em que manteve um caso de incesto com o irmão
Gonçalo Telo Menezes. Deste episódio, que Leonor guardava no armorial das
recordações como o mais desagradável de todos, só Briolanja tinha conhecimento.
Deste e de outros, aliás. Foi numa noite de trovoada, como não havia memória em
Barcelos, que Briolanja inadvertidamente encontrou os dois irmãos enfiados na
cama da rapariga. Estavam nus, ela por cima, ele por baixo, numa audácia que deixou
a velha petrificada junto à porta da câmara, aberta de par em par pelo estrondo
dos trovões ou assim deixada por descuido do rapaz. Mas ainda que a envolvência
física entre irmãos fosse razoavelmente tolerada pela Igreja e vagamente
admitida pela sociedade, Leonor Teles teria preferido, ainda assim, ser
descoberta naquele propósito com um servo, facto bem mais desonroso, a sê-lo
com o próprio irmão.
Apaga essa porcaria, gritou ela,
quando se apercebeu de que a ama a vira deitada com Gonçalo. A presença de
Briolanja àquela hora da noite, num espaço da casa vulgarmente interdito às
criadas e camareiras fora das horas normais de serviço, foi menos acidental do
que imaginar se possa. Briolanja Mendes sabia que Leonor Teles tinha medo das
tempestades e que entrava em pânico sempre que trovejava e a terra se incendiava
com a luz forte dos relâmpagos. Nessas alturas, enroscava-se nas mantas, tapava
os ouvidos, rezava aos santos, chorava muito e, até a borrasca se ir embora, não
parava de tremer. Sabendo, pois, como a jovem reagia às tempestades, Briolanja tomou-se
de cuidados, como aliás era seu hábito em circunstâncias idênticas, acendeu uma
vela de sebo e foi levá-la ao quarto de Leonor para lhe sossegar o espírito e
lhe atenuar os receios. Só que nessa noite a jovem não tremia de medo, mas de
prazer. E isso Briolanja não podia adivinhar...» In José Manuel Saraiva, Rosa
Brava, Oficina do Livro, 2005, ISBN 978-989-555-113-2.
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