segunda-feira, 9 de outubro de 2017

Os Anos. Virgínia Woolf. «Naquele misterioso mundo de clubes e vida de família, do qual ele não lhe falava nunca, alguma coisa estava errada»

jdact

1880
«(…) Um dia qualquer, era o seu eufemismo para o tempo em que sua mulher fosse morta, diria adeus a Londres e passaria a viver no campo. É verdade que havia a casa; e havia as crianças; e havia também... A sua expressão mudou. Ficou menos infeliz, mas também um pouco furtivo e nada à vontade. Tinha para onde ir, afinal. Enquanto conversavam, guardara esse pensamento no fundo da cabeça. Quando se voltou e viu que os outros tinham ido embora, este foi o bálsamo que botou na ferida: iria ver Mira. Mira, pelo menos, ficaria contente de vê-lo. Assim, ao deixar o clube, não foi para o East, para onde se dirigiam os homens atarefados; nem para o West, onde a sua própria casa ficava em Abercorn Terrace. Mas seguiu na direcção de Westminster pelos caminhos calçados que atravessavam o Green Park. A relva estava muito verde. As folhas começavam a apontar. Eram como pequenas ganas, pés de passarinhos brotando dos galhos. Havia como que uma centelha, uma animação por toda parte. O ar era estimulante e recendia a limpeza. O coronel Pargiter, porém, não via nem a relva nem as árvores. Atravessou o parque, no seu sobretudo abotoado, olhando sempre para a frente.
Mas, quando atingiu Westminster, parou. De modo algum gostava dessa parte da história. Cada vez que se acercava da ruazinha escondida pela massa gigantesca da Abadia, a rua de pequenas casas humildes, de cortinas amarelas e cartazes nas janelas, a rua em que o homem dos pãezinhos parecia tocar incessantemente a sua sineta, em que as crianças berravam e pulavam para dentro e para fora das riscas de giz na calçada, ele estacava. Olhava para a direita, para a esquerda. E então caminhava direito até à porta e esperava de cabeça baixa. Não gostaria de ser visto à espera naquele limiar de porta. Não gostava de esperar até ser admitido. Não gostava quando a sra. Sims o deixava entrar. Havia sempre um cheiro na casa. Havia sempre roupa suja pendurada no varal no jardim dos fundos. Subiu a escada, pesado, macambúzio, e entrou na sala. Não havia ninguém, chegara muito cedo. Olhou em volta do aposento com repugnância. Havia excesso de objectos. Sentia-se deslocado, como se ocupasse lugar excessivo, de pé, diante da lareira fechada por uma grade em que se via pintado um martim-pescador no acto de pousar sobre um feixe de juncos. No soalho de cima alguém dava carreirinhas para um lado e para o outro. Estaria alguém com ela?, perguntou-se, apurando o ouvido. Crianças gritavam na rua. Era sórdido, vulgar, furtivo. Um desses dias..., disse consigo mesmo. Mas a porta abriu-se e Mira, sua amante, entrou.
Oh, Bogy, querido!, exclamou. Tinha o cabelo em grande desalinho. E um ar um tanto balofo. Mas era muito mais moça do que ele e parecia sinceramente contente de vê-lo, pensou. O cachorrinho saltou para ela. Lulu! Lulu!, gritou, apanhando o animal numa das mãos e levando a outra ao cabelo. Vem e deixa que o tio Bogy te veja. O coronel instalou-se na cadeira de vime, cheia de estalos. Ela depôs o cão nos joelhos dele. Havia um sinal vermelho atrás de uma das orelhas do bicho. Talvez um eczema. O coronel pôs os óculos para examinar aquilo de perto. Mira beijou-o no ponto onde o colarinho encontrava o pescoço. Os óculos dele caíram. Ela apanhou-os e pôs no cachorro. O velho estava deprimido, sentiu. Naquele misterioso mundo de clubes e vida de família, do qual ele não lhe falava nunca, alguma coisa estava errada. Ele chegara antes que ela tivesse tido tempo de arranjar o cabelo, o que era um aborrecimento. Mas o seu dever era diverti-lo.
E pôs-se a divagar pela sala, o seu corpo, embora avolumado como agora, ainda lhe permitia esgueirar-se entre mesa e cadeira, para cá, para lá. Removeu a grade da lareira e fez um fogo antes que ele pudesse impedi-la. Depois, sentou-se no braço da cadeira do coronel. Oh, Mira!, disse ela mesma, vendo-se ao espelho e mexendo com os grampos do cabelo. Que menina desleixada és! Soltou uma longa trança e deixou-a cair sobre os ombros. Era um cabelo ainda lustroso, belo e cor de ouro, embora ela já beirasse os quarenta e tivesse, para dizer a verdade, uma filha de oito, que amigos criavam em Bedford. O cabelo agora se desmanchava por conta própria, e Bogy, vendo-o cair macio, curvou-se e beijou uma das madeixas. Um realejo pusera-se a tocar lá fora e todas as crianças correram na direcção do som, deixando atrás um súbito silêncio. O coronel começou a afagar o pescoço dela. E a remexer com a mão, que perdera dois dedos, bem mais em baixo, onde o pescoço encontra a espádua. Mira escorregou para o chão e apoiou as costas nos joelhos de coronel». In Virgínia Woolf, Os Anos, 1937, Relógio D'Água, 1992, ISBN-978-972-708-154-7.

Cortesia de Relógiod’Água/JDACT