«(…) O fidalgo deu uma
gargalhada, também ele se encostou sem cerimónias à parede do salão e só
depois, num tom calmo, comentou que mais importante do que o monarca português
promover a felicidade do chefe da cúria de Roma, através de oferendas de
indiscutível valor, seria convencê-lo a dar novo rumo à Igreja. Para Diogo
Pacheco, tornava-se fundamental chamar ao aprisco romano as ovelhas
tresmalhadas e oferecer-lhes um novo alimento espiritual, de modo a impedir a
continuação da fuga e o desencanto dos fiéis. Entendia que o papa Leão X, a que
muitos pela Europa fora chamavam desajustadamente princípe da Renascença, era
um dos grandes responsáveis pelos desmandos da Igreja e a depravação herética,
ao permitir a prática de actos mesquinhos e interesseiros por parte dos mais
influentes clérigos da corte pontifícia. Eram eles, de resto, que dominavam o
Sacro Colégio; eram eles também que, sob as vestes taladas, promoviam o ódio e
a descrença, a defesa das conveniências próprias e dos pecados do vício. E por
isso a fé, uma convicção fundada no testemunho, começava a constituir mais uma
diversão mental do que um rasgo de alma ou uma constante sede do infinito. Na
opinião do fidalgo, a Igreja caminhava assustadoramente para o fim, já quase
sem nenhum prestígio, demasiado enfraquecida no seu poder.
Pois é para tentarmos convencer o
papa a corrigir os desvios do clero e a dar um novo impulso à cristandade que
vos pedi para virdes aqui, para falarmos e vos fazer uma proposta, esclareceu o
rei, após ouvir atentamente o discurso do vassalo. Falais-me de proposta, meu
senhor? Vossa Alteza não propõe nada; Vossa Alteza ordena, retorquiu Diogo
Pacheco, com um sorriso de satisfação que lhe enchia o rosto. Apesar da
manifesta confiança entre o monarca e o nobre, em nenhuma circunstância os dois
homens excluíam um tratamento de considerável respeito e cerimónia. O rei
chamava ao nobre bom amigo ou distinto fidalgo; o nobre dirigia-se ao rei
acolhendo-o por meu Senhor ou Vossa Alteza, ou simplesmente Alteza. Meu bom
amigo, continuou o monarca, descruzando as pernas e endireitando o corpo no
cadeirão, dizeis, e bem, que sou eu quem manda. Pois assim é e assim continuará
até que o Altíssimo me leve deste mundo incomplacente. Na verdade, o que tenho
para dizer é muito simples: decidi integrar-vos na embaixada a Roma para serdes
vós a proferir na cúria romana a oração de obediência a Sua Santidade. Sei que
me fazeis falta aqui, na coroa; sei também que vou sentir a vossa ausência, e
por isso ainda hesitei na escolha, mas não descubro ninguém tão dotado quanto o
distinto fidalgo que tenho à minha frente para explicar à Igreja as preocupações
de el-rei de Portugal sobre o mau caminho que ela está a seguir.
Só vós, com a qualidade do saber
e a excelência da palavra, podereis convencer o papa e o seu consistório da
necessidade de resolverem os problemas que preocupam todos os reinos cristãos
e, em especial, o nosso reino. Emocionado, Diogo Pacheco baixou os olhos,
procurou sob o capeirote um refúgio para as mãos trementes e, sem fixar o rosto
do monarca, balbuciou: é uma honra, Alteza... ... Uma honra devida a quem goza
da fama e do proveito de bem falar sobre a verdade das Escrituras e a urgência
da fé. Com a devida vénia, deixai lembrar-vos que sobre tal assunto há em Portugal
quem melhor do que eu se possa exprimir adequadamente, atalhou o homem num tom
de calculada impostura. Surpreendido, o soberano arregalou os olhos e, elevando
os braços, perguntou num tom simultaneamente animoso e tolerante: conheceis as
Escrituras? Conheço. Não tendes fé? – Tenho.
Não sabeis interpretar as leis
civis e fazer política?, não sabeis falar e escrever latim?, não sabeis do
estado do mundo para promoverdes a condenação dos ímpios e a glorificação dos
crentes?, não sabeis narrar o feito dos portugueses em terras de além-mar e,
perdoai-me a imodéstia, incensar em público este vosso amigo e venturoso rei? Alteza...
Ainda não acabei, ilustre senhor, interrompeu Manuel I num tom de voz
diferente, já quase sumido. Sei que sois capaz de responder com luzimento ao
trabalho que vos peço; que sois capaz de dizer por outras palavras, mais
perfeitas até, o que acabastes de expressar. Mas também quero, e por isso vos
escolhi sem receio de me arrepender, que saibais brilhar na coroa de Roma como
nunca nenhum tribuno alguma vez brilhou.
Tenho a certeza de que com a
vossa compostura, o vosso bom aspecto e a qualidade do verbo havereis de
impressionar não só o papa e os seus cardeais, mas também os representantes da
Europa inteira. Sois muito gentil, Alteza. Não mais do que vós, preclaro
doutor. Nas horas que se seguiram, Manuel I e Diogo Pacheco conversaram sobre
tudo quanto se relacionava com a embaixada para cuja chefia o rei escolhera,
entretanto, Tristão da Cunha, antigo camareiro de João II, duque de Viseu,
igualmente amigo do monarca, herói dos mares da Índia e distinto cavaleiro. Aliás,
este fidalgo estivera prestes a ocupar, em mil quinhentos e seis, o lugar de
primeiro governador da Índia, e tal só não chegou a acontecer porque Manuel I,
seduzido pelo discurso da intriga e pelo sentimento de inveja dos seus conselheiros,
decidiu mudar de ideias e atribuir a Afonso Albuquerque a tão cobiçada
honraria. De qualquer modo, Tristão Cunha era um fidalgo exemplar, um guerreiro
valente em terra e no mar, pelo que ninguém como ele se ajustaria à importância
daquela grandiosa tarefa política para surpreender e influenciar o papa». In
José Manuel Saraiva, Aos Olhos de Deus, Oficina do Livro Editor, 2008, ISBN
978-989-555-364-8.
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