Traição e Bluff
«(…) Soderini conteve-se, mas
estava sem sombra de dúvida perturbado. Maquiavel pode ter ficado também
perturbado, mas além disso sentiu-se impressionado e não deixaria de o
transmitir no despacho que enviou para Florença: este senhor é verdadeiramente
esplêndido e magnificente e, na guerra, não há empreendimento por maior que seja
que não lhe pareça pequeno; é incessante na busca de glória e de território e
não conhece perigos nem fadiga. Chega a um lugar antes que qualquer pessoa se
aperceba de que saiu do lugar onde estava antes. É amado pelos seus soldados e
tem ao seu serviço os melhores homens de Itália. Tudo isto lhe permite ser
vitorioso e formidável, particularmente à luz da sua boa fortuna permanente. A
notícia de que Bórgia tinha tomado Urbino de súbito, a chegada de noite,
fatigado, após longa e dura cavalgada pelas montanhas, o ter sido levado
apressadamente para o palácio mal acabara de desmontar, os guardas armados e o
trancar das portas depois de terem entrado, e por fim o aparecimento teatral de
Bórgia com a luz das velas atrás de si num salão às escuras, tudo isto deve ter
contribuído para baixar as defesas de Maquiavel. Este tinha na altura 33 anos e
já se encontrara com várias figuras importantes, e, no entanto, esta fortíssima
primeira impressão permaneceria com ele para o resto da vida, afectando todos
os seus posteriores pensamentos acerca de Bórgia.
Durante este encontro em Urbino,
as aptidões políticas de Maquiavel levá-lo-iam a suspeitar de que havia um
certo bluff no estilo bombástico de Bórgia. Mas nem isso podia já perturbar a
imagem ideal de um conquistador enérgico e sem escrúpulos, que tão fortemente
tinha ficado gravada na sua mente. Soderini e Maquiavel não o sabiam ainda, mas
a situação de Bórgia tinha sofrido uma modificação drástica nos dias
anteriores. Luís XII, que se encontrava prestes a estabelecer a sua corte em
Asti, no Norte de Itália, não estivera tão distraído como parecia por causa da
sua disputa com a Espanha. Observara a terceira campanha de César na Romagna e
estava bem ciente do que ele era capaz. Mas isso ainda não era tudo. Como resultado
da tomada traiçoeira de Urbino por Bórgia, os seus inimigos na região tinham fugido
e iam a caminho para expor o seu caso a Luís XII, que, ao que constava, tinha ficado
em particular aborrecido com o movimento ostensivo de Bórgia sobre Arezzo, em
território florentino. Contudo, esta acção de Vitellozzo não era inteiramente da
responsabilidade de Bórgia, e este estava bem consciente de que, na melhor das hipóteses,
o seu comandante só estava parcialmente sob o seu controlo. Como se isto já não
fosse mau o suficiente, Bórgia ouvira falar de uma conspiração contra si, que estaria
a ser montada entre os seus comandantes Vitellozzo, Baglioni e Liverotto da
Fermo. Muitos dos castelos e domínios que lhes pertenciam situavam-se ao longo das
fronteiras ocidental e meridional do ducado da Romagna de Bórgia, e eles acabavam
de compreender a sua vulnerabilidade face às contínuas intenções expansionistas
de Bórgia. Só virando-se contra ele tinham probabilidades de sobreviver. Mesmo
Paolo e Giulio Orsini, que se encontravam com Bórgia em Urbino, tinham, segundo
os boatos, sido contactados para se juntarem à conspiração. No momento, ajudavam
Bórgia a intimidar a delegação florentina, informando confidencialmente Soderini
e Maquiavel de que a conquista de Arezzo por Vitellozzo contara com o apoio
encoberto de Luís XII, o que significava que Bórgia podia agora com facilidade desencadear
uma acção sobre a própria Florença, se assim o decidisse.
No entanto, durante quanto tempo mais
manteria Orsini a aparência de que apoiava Bórgia? Estas eram as últimas famílias
aristocráticas poderosas de Roma que ainda conservavam as suas terras e os seus
castelos. Alexandre VI tinha anulado o poder das outras famílias notáveis uma a
uma, quando surgia a oportunidade, acabando por confiscar os castelos e as terras
da família Colonna escassos meses antes, quando esta cometera o erro de alinhar
ao lado de Nápoles contra os franceses e os espanhóis. Os Orsini tinham evidentemente
começado a pensar quanto tempo demoraria até eles próprios serem eliminados e as
suas terras passarem a fazer parte do crescente domínio de Bórgia». In
Paul Strathern, O Artista, o Filósofo e o Guerreiro, Da Vinci, Maquiavel e
Bórgia e o Mundo que eles Criaram, Clube do Autor, Lisboa, 2009, ISBN
978-989-724-010-2.
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