Prosterna-te
«(…) Félix atribuía-se o título
de barão Volkbein, como antes seu pai fizera. Ninguém sabia de que vivia Félix,
onde ia buscar o dinheiro, conhecia os algarismos como um cão conhece a caça,
estacando e perseguindo-os com o mesmo passo infatigável, como aprendera sete
línguas e fazia bom uso desse conhecimento. A sua figura e rosto eram
familiares a muita gente. Não era popular, apesar de a aprovação póstuma
concedida a seu pai suscitar, nos seus íntimos, o olhar especial, semicircular,
próprio dos que, não querendo felicitar em pé de igualdade terrestre, concedem,
no entanto, ao ramo ainda vivo (por causa da morte e da sua sanção) uma ligeira
inclinação de cabeça, em reminiscente perdão de um receio futuro, um modo de saudar que nos é muito habitual em presença
deste povo.
Félix era mais pesado que seu pai
e mais alto também. Os cabelos começavam muito atrás da testa. O rosto era de
um oval longo e cheio, afectado por uma melancolia laboriosa. Só um traço desse
rosto falava de Hedvig: a boca, que, apesar de sensual por ausência de desejo,
como a dela o fora por recusa, se apoiava com excessiva intimidade na estrutura
óssea dos dentes. Os outros traços eram um tanto pesados, queixo, nariz e
pálpebras, numa das quais estava fixado um monóculo, olho cego e redondo brilhando
ao sol.
Era, em geral, visto sozinho,
caminhando a pé ou numa viatura, vestido como se estivesse à espera de
participar num grande acontecimento, apesar de não existir nenhuma função no
mundo para a qual se pudesse dizer que estava adequadamente vestido: no desejo
de se apresentar sempre correctamente, estava, em parte, vestido em trajo de
noite, em parte, em trajo de dia. Saído das entrelaçadas paixões que haviam
feito o seu passado, de uma diversidade de sangues, da confusão de mil
situações impossíveis, Félix tornara-se complexo e simples, ou seja,
embaraçado.
O seu embaraço tomou a forma de
uma obsessão por aquilo a que chamava a velha Europa: a aristocracia, a nobreza,
as cabeças coroadas. Quando falava de um titular, fazia uma pausa antes e depois
de lhe pronunciar o nome. Sabendo que a perífrase era a única forma de
aproximação possível, tornava-a interminável e exigente. Com a fúria de um
fanático perseguia a sua própria desqualificação, rearticulando os ossos das
cortes imperiais há muito esquecidos (só os que foram recordados muito tempo
podem protestar por serem muito tempo esquecidos), escutando com uma
loquacidade inconveniente os funcionários e os mordomos, com receio de que a
desatenção o fizesse perder algum fragmento da ressurreição a que procedia.
Sentia que o grande passado poderia talvez ser parcialmente refeito se se
humilhasse o suficiente, sucumbisse e prestasse homenagem.
Em 1920 encontrava-se em Paris
(ficara livre do serviço militar por ser cego de um olho), sempre em polainas,
sempre de fraque, saudando, procurando com rápidos movimentos pendulares as coisas
de boa qualidade a que prestar tributo: a rua como deve ser, o café como deve ser,
o edifício como deve ser, a vista como deve ser. No restaurante saudava ligeiramente
quem tivesse o ar de ser alguém, com uma inclinação de cabeça tão imperceptível
que a pessoa visada, surpreendida, podia pensar que ele acabava simplesmente de
ajeitar o estômago. Escolheu um determinado apartamento só porque um Bourbon
para lá fora transportado quando estava para morrer. Empregou um criado e uma cozinheira,
ele por ser parecido com Luís XIV, ela porque se parecia com a rainha Vitória, uma
Vitória de um material mais barato, ajustado à bolsa de um pobre». In
Djuna Barnes, O Bosque da Noite, 1936, 1950, Relógio D’Água Editores, 2010,
ISBN 978-989-641-161-9.
Cortesia de Relógiod’águaE/JDACT