domingo, 8 de outubro de 2017

O Bosque da Noite. Djuna Barnes. «O seu embaraço tomou a forma de uma obsessão por aquilo a que chamava a velha Europa: a aristocracia, a nobreza, as cabeças coroadas»

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Prosterna-te
«(…) Félix atribuía-se o título de barão Volkbein, como antes seu pai fizera. Ninguém sabia de que vivia Félix, onde ia buscar o dinheiro, conhecia os algarismos como um cão conhece a caça, estacando e perseguindo-os com o mesmo passo infatigável, como aprendera sete línguas e fazia bom uso desse conhecimento. A sua figura e rosto eram familiares a muita gente. Não era popular, apesar de a aprovação póstuma concedida a seu pai suscitar, nos seus íntimos, o olhar especial, semicircular, próprio dos que, não querendo felicitar em pé de igualdade terrestre, concedem, no entanto, ao ramo ainda vivo (por causa da morte e da sua sanção) uma ligeira inclinação de cabeça, em reminiscente perdão de um receio futuro,  um modo de saudar que nos é muito habitual em presença deste povo.
Félix era mais pesado que seu pai e mais alto também. Os cabelos começavam muito atrás da testa. O rosto era de um oval longo e cheio, afectado por uma melancolia laboriosa. Só um traço desse rosto falava de Hedvig: a boca, que, apesar de sensual por ausência de desejo, como a dela o fora por recusa, se apoiava com excessiva intimidade na estrutura óssea dos dentes. Os outros traços eram um tanto pesados, queixo, nariz e pálpebras, numa das quais estava fixado um monóculo, olho cego e redondo brilhando ao sol.
Era, em geral, visto sozinho, caminhando a pé ou numa viatura, vestido como se estivesse à espera de participar num grande acontecimento, apesar de não existir nenhuma função no mundo para a qual se pudesse dizer que estava adequadamente vestido: no desejo de se apresentar sempre correctamente, estava, em parte, vestido em trajo de noite, em parte, em trajo de dia. Saído das entrelaçadas paixões que haviam feito o seu passado, de uma diversidade de sangues, da confusão de mil situações impossíveis, Félix tornara-se complexo e simples, ou seja, embaraçado.
O seu embaraço tomou a forma de uma obsessão por aquilo a que chamava a velha Europa: a aristocracia, a nobreza, as cabeças coroadas. Quando falava de um titular, fazia uma pausa antes e depois de lhe pronunciar o nome. Sabendo que a perífrase era a única forma de aproximação possível, tornava-a interminável e exigente. Com a fúria de um fanático perseguia a sua própria desqualificação, rearticulando os ossos das cortes imperiais há muito esquecidos (só os que foram recordados muito tempo podem protestar por serem muito tempo esquecidos), escutando com uma loquacidade inconveniente os funcionários e os mordomos, com receio de que a desatenção o fizesse perder algum fragmento da ressurreição a que procedia. Sentia que o grande passado poderia talvez ser parcialmente refeito se se humilhasse o suficiente, sucumbisse e prestasse homenagem.
Em 1920 encontrava-se em Paris (ficara livre do serviço militar por ser cego de um olho), sempre em polainas, sempre de fraque, saudando, procurando com rápidos movimentos pendulares as coisas de boa qualidade a que prestar tributo: a rua como deve ser, o café como deve ser, o edifício como deve ser, a vista como deve ser. No restaurante saudava ligeiramente quem tivesse o ar de ser alguém, com uma inclinação de cabeça tão imperceptível que a pessoa visada, surpreendida, podia pensar que ele acabava simplesmente de ajeitar o estômago. Escolheu um determinado apartamento só porque um Bourbon para lá fora transportado quando estava para morrer. Empregou um criado e uma cozinheira, ele por ser parecido com Luís XIV, ela porque se parecia com a rainha Vitória, uma Vitória de um material mais barato, ajustado à bolsa de um pobre». In Djuna Barnes, O Bosque da Noite, 1936, 1950, Relógio D’Água Editores, 2010, ISBN 978-989-641-161-9.

Cortesia de Relógiod’águaE/JDACT