Serra
Morena (perto de Córdova). Fevereiro de 1133
«(…) A criada ainda ouvira falar
dela, mas, anos mais tarde, Zulmira e as duas princesas haviam partido para
Coimbra, acompanhando Taxfin, segundo marido de Zulmira, na primeira expedição bélica
imposta pelo califa Ali Yusuf. Desde então, nunca mais se ouvira falar ali da misteriosa
e azarada bruxa. Desapareceu. A guardiã de Hisn contou que o almocreve Mem, quando
viera depositar no mausoléu o corpo de Zulmira, descrevera os seus encontros com
uma mulher semelhante, sempre vestida de negro, que vivia perto de Coimbra e vigiava
à distância as raparigas. Essa mulher chamava-se Sohba e o almocreve concluíra que
era a tia das princesas. Pode ser que Mem esteja certo..., sorriu a idosa. Zhakaria
recordou que haviam procurado Sohba em Santarém e nas redondezas, mas ninguém
sabia dela. Talvez tenha morrido, sugeriu a criada de Hisn. O cordovês não
acreditava, Sohba era uma mulher rija. Para onde poderia ir?, perguntou.
A sua interlocutora ficou em silêncio
algum tempo, como se estivesse a desenterrar da memória algo custoso. Depois
disse: para cá não veio. Córdova cheira-lhe a morte. Todos os familiares de
Sohba tinham morrido, desde o pai, Hixam III, o último califa de Córdova, até
ao irmão Hixam de Hisn, passando por uma filha que a criada nunca conhecera e
que se dizia ter falecido jovem, sendo essa a primordial razão da loucura de
Sohba. A criada apontou um olhar triste na direcção dos túmulos e comentou: uma
grande desgraça abraçou os Benu Ummeya. Depois de um suspiro prosseguiu: quem
larga um trono, como Hixam III fez, condena a família. A idosa acrescentou que
o maldito Ali Yusuf não descansaria enquanto não os degolasse a todos. Já aviou
Zulmira e Taxfin, só faltam as minhas meninas.
Com o olhar embaciado que sempre
exibia, aconselhou Zhakaria: ide falar com Ismar. É andaluz e é fino, hábil e firme.
Desde Taxfin que não se via governador tão bom em Córdova. De seguida, a velha
criada descreveu ao cordovês o que se estava a passar na Andaluzia muçulmana,
que sofria uma inesperada mutação. Sinto-o, pela primeira vez em muitos anos. Mesmo
aquela mulher, que vivia em Hisn como uma eremita, notara o califado de Ali
Yusuf em perda. O respeito ao trono de Marraquexe já não era o de outrora.
Pelas taifas de Sevilha, Córdova, Mértola ou Badajoz corria já um claro, embora
ainda ténue, rumor de revolta. Ismar sabe do que falo, avisou a criada. Incentivado
por ela, Abu Zhakaria foi ao encontro daquele príncipe de Córdova, que viria a
ser um dos mais ferozes inimigos de Afonso Henriques e do nosso futuro reino de
Portugal.
Córdova. Fevereiro de 1133
Já
vos esperava. O governador Ismar levantou-se ao ver Abu Zhakaria entrar no seu
salão privado, situado no primeiro andar do magnífico Azzahrat, construído dois
séculos antes pelo mais célebre califa da Andaluzia, o valoroso e sapiente Abd
al Rahman III, aquele grandioso palácio destinara-se a albergar o detentor do
trono de Córdova e a sua família, os seus infindáveis criados e o seu bem
recheado harém. Mas, no presente, servia apenas de residência exclusiva do wali
da cidade, embora permanecesse um esplendoroso edifício, onde se multiplicavam
os claustros, os minaretes, os jardins interiores, as piscinas e uma quantidade
incontável de quartos, salas e salões». In Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal, A
Vitória do Imperador, Casa das Letras, LeYa, 2016, ISBN 978-989-741-461.
Cortesia de CdasLetras/LeYa/JDACT