sexta-feira, 27 de outubro de 2017

O Gigante Enterrado. Kazuo Ishiguro. «Não quero dar a impressão de que era só isso que existia na Grã-Bretanha daquele tempo; de que numa época em que magníficas civilizações floresciam em outras partes do mundo»

jdact

«Teria que procurar muito tempo para encontrar algo parecido com as veredas sinuosas ou os prados tranquilos pelos quais a Inglaterra mais tarde se tornaria célebre. Em vez disso, o que havia eram quilómetros de terra desolada e inculta; por todo lado, trilhas toscas que atravessavam colinas escarpadas ou charnecas áridas. A maior parte das estradas deixadas pelos romanos já teria àquela altura se fragmentado ou ficado coberta de vegetação, muitas delas desaparecendo no meio do mato. Uma névoa gelada pairava sobre rios e pântanos, muito útil aos ogros que ainda eram nativos daquela terra. As pessoas que moravam ali perto, e pode-se imaginar o grau de desespero que as teria levado a estabelecer-se num lugar tão soturno, teriam razão de sobra para temer essas criaturas, cuja respiração ofegante se fazia ouvir muito antes de seus corpos deformados emergirem da neblina. Mas esses monstros não causavam espanto. As pessoas da época os teriam encarado como perigos quotidianos, e naquele tempo havia uma infinidade de outras coisas com que se preocupar: como obter alimentos do solo duro; como não deixar que a lenha acabasse; como curar a doença que podia matar uma dúzia de porcos num único dia e provocar brotoejas esverdeadas nas bochechas das crianças. De qualquer forma, os ogros não eram tão ruins assim, desde que ninguém os provocasse. Era preciso aceitar que, de vez em quando, talvez depois de alguma obscura desavença entre eles próprios, um desses monstros, tomado de uma fúria terrível, iria entrar atabalhoadamente numa aldeia e, apesar dos gritos e das armas brandidas na sua direcção, acabaria destruindo tudo o que lhe aparecesse pela frente e ferindo quem demorasse a sair de seu caminho. Ou que, de vez em quando, um ogro poderia agarrar uma criança e sumir neblina adentro. As pessoas da época tinham que se resignar com essas atrocidades.
Numa dessas áreas na beira de um extenso pântano, à sombra de algumas colinas de contornos irregulares, vivia um casal de idosos, Axl e Beatrice. Talvez não fossem exactamente esses os nomes, mas, para facilitar, é assim que vamos referir-nos a eles. Eu diria que esse casal levava uma vida isolada, mas naquele tempo poucos viviam isolados em qualquer dos sentidos que entendemos hoje. Para se manter aquecidos e ter protecção, os aldeões moravam em tocas, muitas delas escavadas bem lá no fundo da encosta da colina, que se ligavam umas às outras por passagens subterrâneas e corredores cobertos. O nosso casal de velhinhos morava num desses conjuntos labirínticos de tocas, ou abrigos, edifício seria uma palavra digna demais para descrever aquilo, com cerca de sessenta outros aldeões. Se saísse desse abrigo e caminhasse por vinte minutos ao redor da colina, chegaria à comunidade vizinha, que lhe pareceria idêntica à primeira. Mas, para os próprios habitantes, haveria muitos detalhes para distinguir um abrigo do outro, dos quais eles sentiriam orgulho ou vergonha.
Não quero dar a impressão de que era só isso que existia na Grã-Bretanha daquele tempo; de que numa época em que magníficas civilizações floresciam em outras partes do mundo, aqui ainda não estávamos muito além da Idade do Ferro. Se tivesse a chance de perambular à vontade pelo interior, poderia muito bem encontrar castelos cheios de música, boa comida, excelência atlética; ou mosteiros com moradores extremamente cultos. Mas não há como negar: mesmo montado num cavalo forte, com o tempo bom, poderia passar dias cavalgando sem avistar nenhum castelo nem mosteiro elevando-se do meio da vegetação. A maior parte do tempo, veria comunidades como a que acabei de descrever e, a menos que estivesse levando presentes como alimentos e roupas, ou estivesse armado até os dentes, não teria a menor garantia de ser bem recebido. Lamento pintar um quadro como esse do nosso país naquela época, mas o que se há.de fazer?
Voltando a Axl e Beatrice. Como eu dizia, esse casal idoso morava na margem externa do abrigo, de modo que a toca deles ficava menos protegida dos elementos e pouco se beneficiava do calor da fogueira da Grande Câmara, onde todos se reuniam à noite. Talvez tenha havido uma época em que moravam mais perto do fogo, uma época em que eles moravam com os filhos. Na verdade, eram exactamente ideias assim que vinham à cabeça de Axl quando ele ficava acordado na cama nas horas vazias antes do amanhecer, enquanto a sua mulher dormia um sono profundo ao seu lado, e nesse momento a sensação de uma perda indefinida começava a lhe doer no coração, impedindo-o de pegar no sono de novo. Talvez tenha sido por isso que, naquela manhã específica, Axl desistiu de ficar na cama e saiu de mansinho do abrigo para ir se sentar lá fora, no banco velho e torto que ficava ao lado da entrada, à espera dos primeiros sinais da luz do dia. Era Primavera, mas o ar ainda estava gélido, embora Axl estivesse enrolado no manto de Beatrice, que ele tinha pegado ao sair». In Kazuo Ishiguro, O Gigante Enterrado, Gradiva, 2017, ISBN 978-989-616-641-0.

Cortesia de Gradiva/JDACT