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No entanto, ficou tão absorto nos seus pensamentos que,
quando se deu conta de como estava com frio, as estrelas já tinham praticamente
sumido, um brilho começava a espalhar-se pelo horizonte e as primeiras notas do
canto dos pássaros emergiam da penumbra. Axl levantou-se lentamente do banco,
arrependido de ter passado tanto tempo do lado de fora. Gozava de boa saúde,
mas tinha levado um bom tempo para se livrar da última febre e não queria que
ela voltasse. Sentia agora a humidade nas suas pernas, porém, quando se virou
para voltar para dentro do abrigo, o que mais sentiu foi satisfação, pois naquela manhã ele tinha conseguido lembrar-se
de várias coisas que vinham-lhe fugindo à memória já fazia algum tempo. Além
disso, sentia que estava prestes a tomar uma decisão muito importante, que
vinha sendo adiada havia muito tempo, e isso lhe dava um entusiasmo que ele
estava ansioso para compartilhar com a esposa.
Do lado de dentro, as passagens entre as tocas ainda
estavam em total escuridão, e ele foi obrigado a tactear o caminho para vencer
a pequena distância de volta até à porta da sua câmara. Muitas das portas no
interior do abrigo não passavam de um arco para marcar a entrada de uma câmara.
A natureza aberta desse arranjo não incomodava os aldeões por lhes tirar a
privacidade, mas permitia que os quartos aproveitassem qualquer calorzinho que
viesse da grande fogueira pelos corredores ou das outras fogueiras menores
permitidas dentro do abrigo. No entanto, como ficava longe demais de qualquer
fogueira, o quarto de Axl e Beatrice tinha algo que poderíamos reconhecer como
uma porta de verdade: uma grande moldura de madeira entrecruzada com pequenos
galhos, ramos de parreira e de cardo, que alguém que estivesse entrando ou
saindo precisava levantar e empurrar para o lado, e que impedia a entrada de
correntes de ar frio. Axl teria
dispensado de bom grado essa porta, mas, com o tempo, ela havia-se tornado um
motivo considerável de orgulho para Beatrice. Muitas vezes, quando voltava para
o quarto, ele encontrava a esposa retirando ramos murchos dessa construção e os
substituindo por outros mais frescos que ela colhera durante o dia. Naquela
manhã, Axl afastou a porta apenas o suficiente para poder entrar, tomando
cuidado para fazer o mínimo de barulho possível. Ali, a luz do amanhecer
começava a infiltrar-se no quarto pelas pequenas frestas da parede externa. Ele
conseguia ver vagamente a sua própria mão diante de si e, na cama de capim, a
silhueta de Beatrice, que ainda parecia dormir sob as cobertas grossas.
Axl ficou tentado a acordar a mulher, pois um lado seu
tinha a certeza de que, se nesse momento ela estivesse acordada e conversasse
com ele, qualquer barreira que ainda restasse contra a decisão que ele acabara
de tomar finalmente ruiria. Mas ainda levaria algum tempo para a comunidade se
levantar e o dia de trabalho começar, então o homem acomodou-se no banquinho
que ficava num canto do quarto, ainda bem embrulhado no manto da esposa. Ele perguntava
se a neblina naquela manhã seria muito espessa
e se, quando a escuridão desaparecesse, descobriria que ela tinha penetrado
pelas rachaduras dentro do quarto deles. Mas, depois, os pensamentos dele desviaram-se
dessas questões e se concentraram novamente no que o preocupava antes. Será que
eles sempre tinham vivido assim, só os dois, na periferia da comunidade? Ou
será que um dia as coisas já haviam sido muito diferentes? Mais cedo, lá fora,
alguns fragmentos de uma recordação tinham-lhe voltado à mente: um breve
momento em que ele estava andando pelo longo corredor central do abrigo, com o
braço em torno dos ombros de um de seus filhos e o corpo um pouco curvado, não
por causa da idade, como poderia acontecer agora, mas simplesmente porque
queria evitar bater a cabeça nas vigas do corredor sombrio. Talvez a criança tivesse
acabado de lhe dizer alguma coisa engraçada e os dois estivessem rindo. Mas
agora, exactamente como acontecera antes lá fora, nada se fixava direito na sua
mente e, quanto mais ele se concentrava, mais os fragmentos pareciam tornar-se
indistintos. Talvez fossem apenas fantasias de um velho tolo. Talvez Deus nunca
lhes tivesse dado filhos». In Kazuo Ishiguro, O Gigante Enterrado, Gradiva,
2017, ISBN 978-989-616-641-0.
Cortesia de Gradiva/JDACT