sábado, 21 de outubro de 2017

Mentiras de Guerra. 1133-1134. Domingos Amaral. «Zhakaria acalmou-lhe a angústia: as princesas Fátima e Zaida continuavam vivas, mas também prisioneiras de Ibn Henrik, nome que os muçulmanos davam a Afonso Henriques»

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Serra Morena (perto de Córdova). Fevereiro de 1133
«(…) A morte e a tragédia ensombravam a história dos Benu Ummeya. No presente, restavam apenas as duas princesas, presas em Coimbra. Os épicos sonhos do passado, a quimera de ressuscitar o glorioso califado de Córdova, sempre alimentada por Taxfin e Zulmira, não passava agora de uma fantasia cruel. Aquela espantosa família, que durante trezentos anos reinara em toda a Andaluzia, perdera a força vital, pois o maldito califa Ali Yusuf aniquilara os seus pilares. Que podia Abu Zhakaria contra aquele almorávida asqueroso e vingativo? Ou contra o emergente poder de Afonso Henriques no Condado Portucalense? A sua derradeira esperança era o actual governador de Córdova, Ismar, um árabe andaluz que conhecia os seus esforços para resgatar as princesas. Será que ele ainda se lembraria de Abu Zhakaria, o fiel ajudante de Taxfin? O poder mudava os homens. Sendo Ismar o actual wali de Córdova, não era certo que o auxiliasse, pois provavelmente tinha excelentes relações com Ali Yusuf. Mais um que se vendera? Abu não sabia, mas Ismar era a sua última esperança.
Nas taifas de Badajoz, Mértola ou Sevilha, os governadores eram berberes, almorávidas leais ao califa. Qualquer menção à reabilitação da família Benu Ummeya equivalia a uma condenação à morte. E mesmo noutras cidades, como Beja, Lisboa ou Santarém, eram curtos os apoios para a romântica causa da ressurreição do califado de Córdova, poucos mostravam coragem para se opor ao invencível e aterrorizador califa de Marraquexe. Zhakaria desmontou e apreciou Hisn Abi Cherif. O pequeno castelo estava limpo, as árvores podadas, a lareira acesa, saía fumo da chaminé. O guerreiro cordovês concluiu que a velha criada de Zulmira continuava viva precisamente no momento em que ouviu uma voz, nas suas costas. Não as trazeis de volta. Abu voltou-se, de mão no cabo do alfange, mas logo o largou ao ver que quem lhe falava era uma mulher idosa e curvada, de andar lento e olhar vago, que se aproximou dele e perguntou, preocupada: morreram?
Zhakaria acalmou-lhe a angústia: as princesas Fátima e Zaida continuavam vivas, mas também prisioneiras de Ibn Henrik, nome que os muçulmanos davam a Afonso Henriques. A região a sul de Coimbra estava a ferro e fogo e Zhakaria já não tinha com que pagar aos seus desleais mercenários. Aqui não há ouro, murmurou a criada. Era uma mulher mirrada pelo tempo, com milhares de rugas na pele e o pescoço seco e rugoso, como o de uma galinha. Usava um lenço na cabeça e os seus olhos baços não pareciam fixar o interlocutor, provavelmente já mal o via. Quando Abu manifestou a esperança de convencer Ismar a ajudá-lo, ela deu a sua condordância. É dos nossos. Sentaram-se num banco corrido, no pequeno pátio da alcáçova. O antigo ajudante militar de Taxfin perguntou se era verdade que Sohba, a velha mulher de negro que vivia perto de Soure, era a irmã gémea de Hixam de Hisn, sendo, portanto, tia das princesas. Não sei, há tanto tempo que não a vejo, respondeu a criada. Décadas antes, a gémea de Hixam de Hisn, convencida de que possuía artes mágicas, estivera na origem do acidente que vitimara o seu irmão, pai das princesas. Ao explodir bolas de fogo, assustara o cavalo, que se empinara, atirando ao chão o cavaleiro. A queda partira o pescoço de Hixam de Hisn, que morrera sem sequer soltar um grito, para grande tristeza de Zulmira e suas filhas. A velha criada suspirou: depois desse terrível dia, Sohba fugiu para os píncaros desta serra, a que chamam Morena». In Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal, A Vitória do Imperador, Casa das Letras, LeYa, 2016, ISBN 978-989-741-461.

Cortesia de CdasLetras/LeYa/JDACT