Serra
Morena (perto de Córdova). Fevereiro de 1133
«(…) A morte e a tragédia ensombravam
a história dos Benu Ummeya. No presente, restavam apenas as duas princesas,
presas em Coimbra. Os épicos sonhos do passado, a quimera de ressuscitar o glorioso
califado de Córdova, sempre alimentada por Taxfin e Zulmira, não passava agora de
uma fantasia cruel. Aquela espantosa família, que durante trezentos anos reinara
em toda a Andaluzia, perdera a força vital, pois o maldito califa Ali Yusuf
aniquilara os seus pilares. Que podia Abu Zhakaria contra aquele almorávida asqueroso
e vingativo? Ou contra o emergente poder de Afonso Henriques no Condado Portucalense?
A sua derradeira esperança era o actual governador de Córdova, Ismar, um árabe
andaluz que conhecia os seus esforços para resgatar as princesas. Será que ele ainda
se lembraria de Abu Zhakaria, o fiel ajudante de Taxfin? O poder mudava os homens.
Sendo Ismar o actual wali de Córdova, não era certo que o auxiliasse, pois
provavelmente tinha excelentes relações com Ali Yusuf. Mais um que se vendera? Abu
não sabia, mas Ismar era a sua última esperança.
Nas taifas de Badajoz, Mértola ou
Sevilha, os governadores eram berberes, almorávidas leais ao califa. Qualquer
menção à reabilitação da família Benu Ummeya equivalia a uma condenação à morte.
E mesmo noutras cidades, como Beja, Lisboa ou Santarém, eram curtos os apoios para
a romântica causa da ressurreição do califado de Córdova, poucos mostravam coragem
para se opor ao invencível e aterrorizador califa de Marraquexe. Zhakaria desmontou
e apreciou Hisn Abi Cherif. O pequeno castelo estava limpo, as árvores podadas,
a lareira acesa, saía fumo da chaminé. O guerreiro cordovês concluiu que a
velha criada de Zulmira continuava viva precisamente no momento em que ouviu uma
voz, nas suas costas. Não as trazeis de volta. Abu voltou-se, de mão no cabo do
alfange, mas logo o largou ao ver que quem lhe falava era uma mulher idosa e curvada,
de andar lento e olhar vago, que se aproximou dele e perguntou, preocupada: morreram?
Zhakaria
acalmou-lhe a angústia: as princesas Fátima e Zaida continuavam vivas, mas também
prisioneiras de Ibn Henrik, nome que os muçulmanos davam a Afonso Henriques. A região
a sul de Coimbra estava a ferro e fogo e Zhakaria já não tinha com que pagar aos
seus desleais mercenários. Aqui não há ouro, murmurou a criada. Era uma mulher
mirrada pelo tempo, com milhares de rugas na pele e o pescoço seco e rugoso, como
o de uma galinha. Usava um lenço na cabeça e os seus olhos baços não pareciam fixar
o interlocutor, provavelmente já mal o via. Quando Abu manifestou a esperança de
convencer Ismar a ajudá-lo, ela deu a sua condordância. É dos nossos. Sentaram-se
num banco corrido, no pequeno pátio da alcáçova. O antigo ajudante militar de Taxfin
perguntou se era verdade que Sohba, a velha mulher de negro que vivia perto de Soure,
era a irmã gémea de Hixam de Hisn, sendo, portanto, tia das princesas. Não sei,
há tanto tempo que não a vejo, respondeu a criada. Décadas antes, a gémea de Hixam
de Hisn, convencida de que possuía artes mágicas, estivera na origem do acidente
que vitimara o seu irmão, pai das princesas. Ao explodir bolas de fogo, assustara
o cavalo, que se empinara, atirando ao chão o cavaleiro. A queda partira o pescoço
de Hixam de Hisn, que morrera sem sequer soltar um grito, para grande tristeza
de Zulmira e suas filhas. A velha criada suspirou: depois desse terrível dia, Sohba
fugiu para os píncaros desta serra, a que chamam Morena». In Domingos Amaral, Assim Nasceu
Portugal, A Vitória do Imperador, Casa das Letras, LeYa, 2016, ISBN
978-989-741-461.
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