Guimarães. Dezembro de 1130
«(…) Tal como meu pai, meu tio era
um homem de média estatura, com os cabelos já acinzentados. Com mais de quarenta
anos, nos seus olhos escuros e baços notava-se a desilusão dos tristes, embora o
seu sorriso pacífico revelasse uma aceitação serena das agruras com que a vida o
brindara. A sua esposa acompanhara-o apenas dois anos e só a Virgem Maria sabia
o quanto chorara a sua prematura morte. Vi, pelo canto do olho, meu pai
confirmar com um aceno de cabeça. Os irmãos Moniz não só eram fisicamente parecidos,
como partilhavam uma solidariedade pesarosa, pois a prematura viuvez de ambos
era resultado de doenças inesperadas das respectivas mulheres. Fiquei louco de
tristeza, confessou meu tio. Pensei em morrer também, para me juntar a ela no Céu.
Associei aquele pensamento lúgubre à partida súbita e fatal de sua filha Raimunda.
Talvez esta tivesse herdado do pai uma propensão pelos abismos negros,
acrescentando-lhe a trágica vontade para executar um acto tão extreemo que meu tio
nunca tivera.
Só me curei com uma longa viagem.
Andei três anos pelo mundo, como um sonâmbulo pela noite, contou ele. No mesmo ano
em que o conde Henrique morrera, tinha Afonso Henriques três anos e eu quatro,
Ermígio Moniz partira para um demorado passeio que o levara primeiro por terras
de Hispânia e depois pelos mares mediterrâneos. A vossa prima foi o fruto dessa
peregrinação. Trouxe-a no regresso e tentei educá-la, mas também ela se entregou
a Deus. Mirou Afonso Henriques e no seu olhar não existia nenhuma recriminação ou
indício de atribuição de culpa, pois não considerava o príncipe responsável pelo
suicídio de Raimunda. Com um suspiro compreensivo, interrogou-se: quem somos
nós para entender o mistério da vida e da morte? Porque se matou Raimunda? Porque
não foi bem-amada por mim, seu pai? Talvez... Nunca soube como falar com ela. Meu
tio sempre tratara a filha com alguma distância, mas isso era habitual com os
bastardos e as bastardas. Agora que ela já não estava entre nós, admitia a possibilidade
de lhe ter falhado com algo, carregando a tormenta póstuma de um progenitor alheado.
Não me lembro de a ter abraçado uma
única vez, depois, olhando de novo para o príncipe, murmurou: como vedes, não sois
o único a sofrer com as mulheres. De repente, Afonso Henriques ergueu a sobrancelha,
pois nascera nele um laivo de curiosidade. Como morreu a mãe dela? Meu tio Ermígio
torceu o rosto num esgar, como se lhe causasse dor ter de revisitar tempos antigos.
Mas respondeu: ao dar à luz. Tanta parcimónia descritiva não satisfez Afonso Henriques,
que quis saber quem era ela e onde meu tio a conhecera. O príncipe parecia pela
primeira vez interessado numa história exterior a si mesmo e Ermígio Moniz lá acabou
por narrar o nascimento de minha prima. Partido de Lamego, meu tio rumara a Compostela,
visitara Leão, Sahagún e Toledo. Depois, descera a terras muçulmanas, a Oreja, Jaen,
Sevilha, Córdova e Mérida, e por lá conhecera uma rapariga tímida, mas muito carinhosa,
a quem se afeiçoara.
Dominado pelos imperativos
masculinos, curou com ela uma parcela do seu anterior desgosto e, embalado por aquele
doce interregno de ternuras, não pensara em partir até ao dia em que foi surpreendido
pelo inesperado desaparecimento da moça. Permanecera semanas no local, sempre à
espera de que a jovem reaparecesse, mas, como isso não aconteceu, foi forçado a
recomeçar a sua viagem. Conhecida a Andaluzia árabe, subira a Saragoça e a Barcelona,
onde apanhara um barco até Roma. Mais de um ano depois, quando se sentiu em paz
e aceitou finalmente o seu destino inglório de viúvo, decidiu regressar e, como
sempre acontece com os homens tristes que se apegam a uma mulher, voltou à cidade
onde se sentira bem. Contudo, o destino presenteou-o com novo desgosto, quando encontrou
na casa onde estivera apenas uma velha criada, com uma criança nos braços, órfã
da mãe que a gerara.
Foi
um segundo e cruel sofrimento. Como a idosa ameaçava entregar a menina, meu tio
tomou posse da bastarda e regressou ao Condado Portucalense. Tentei tudo para que
Raimunda fosse feliz, a viver convosco, seus primos, disse Ermígio Moniz, olhando
para mim. Ainda curioso, o príncipe perguntou: como se chamava a mãe dela? A falecida
respondia pelo nome de Aqsa e logo Afonso Henriques quis saber se era moura, o que
meu tio confirmou. Antes do desaparecimento, haviam combinado que ela se converteria
ao cristianismo, se ficassem juntos, coisa que nunca aconteceu. Ao ouvir isto, o
príncipe de Portugal afirmou, num timbre solene que sempre usava quando falava do
seu famoso avô: o imperador Afonso VI também casou com uma moura chamada Zaida de
Sevilha! Talvez devesse fazer como ele e desposar uma das princesas andaluzas que
continuam presas em Coimbra!» In Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal, A
Vitória do Imperador, Casa das Letras, LeYa, 2016, ISBN 978-989-741-461.
Cortesia
de CdasLetras/LeYa/JDACT