«(…) Para João Afonso Telo, a
palavra era, acima de tudo, um voto terminante, uma espécie de lei irrevogável,
a insuspeita garantia de que nenhuma forma de arrependimento poderia alterar o
que quer que fosse. O que se dissesse e se prometesse estava dito e prometido.
Significava isto que, uma vez dada a sua palavra, nada faria o conde voltar
atrás. E Leonor Teles sabia-o melhor que ninguém. Mesmo assim, numa tarde de
muito frio, depois de ter passado mais de duas horas a rezar para que a
falecida mãe intercedesse no Céu por ela e a ajudasse a descobrir na terra o
caminho da redenção e da procura, encontrou-se às escondidas, na câmara inferior
do solar, com Briolanja Mendes, que fora na sua infância uma dedicada ama e era
agora, na idade adulta, a única confidente e excepcional conselheira. Queria
saber o que a velha criada pensava do assunto, da conveniência ou da inconveniência
de uma conversa com o senhor conde acerca da proposta de renúncia ao fidalgo
prometido.
Logo que as duas mulheres entraram
na sala, Leonor Teles, antes mesmo de se sentar num dos dois únicos bancos de
pinho que compunham o parco mobiliário daquele desconfortável compartimento,
apoiou as mãos sobre os ombros da ama e, num tom de voz estremecido, perguntou:
que hei-de fazer eu à vida, Briolanja Mendes? Tu, minha devotada amiga, tu que
acreditas nos sortilégios e sabes que os presságios se cumprem sempre, diz-me o
que deverei fazer? Sabes que arrenego o homem com quem vou casar e, Deus me
perdoe a blasfémia, também deves saber que por arrenegá-lo tanto jamais saberia
amar o filho que porventura dele viesse a ter... Senhora... Não, Briolanja,
ouve primeiro e fala depois. Com a mão direita e a ajuda da perna esquerda,
Leonor Teles arrastou um banco pelo chão e colocou-o a pequena distância do
outro, daquele que haveria de ocupar.
Agora senta-te aqui e escuta,
ordenou, triste, emocionada, com os olhos vermelhos de muito choro. Dizia-te eu
que abomino João Lourenço não tanto por me ter sido imposto pelo senhor conde,
meu tio, nem sequer pela sua desagradável feição e o grosseiro porte, mas
principalmente por ver nesse reles fidalgo a incapacidade de recensear dois ou
três actos de valentia que tanto nos seduzem, a nós, mulheres. Disseram-me aqui
mesmo, nesta câmara, alguém sentado no lugar onde estás, e que bem o conhece,
que João Lourenço é um homem habituado unicamente ao consolo das amantes e ao
regalo de outras mulheres de estimação duvidosa. Assim sendo, como posso eu
partilhar a cama com um demónio desses? Diz-me, Briolanja! Como posso eu
partilhar o meu corpo com um fidalgo rico de bens, é certo, mas pobre de
sentimentos? Ou me engano muito ou ele espera de mim, apenas e tão-só, uma
esposa dócil, a esposa fértil que lhe multiplique a família, lhe perpetue o
nome e a descendência.
Senhora, o que quer dizer de seu
ao senhor conde?, perguntou Briolanja Mendes, depois de a jovem interromper o
discurso para limpar os olhos à manga do balandrau, colocado cuidadosamente
sobre os ombros. Leonor Teles fitou séria o rosto de Briolanja, com as mãos
ajeitou a crespina que lhe cobria as longas tranças e, sem pestanejar ou mudar
de expressão, respondeu num tom de voz quase inaudível: dizer-lhe que não quero
casar com João Lourenço. E, após uma prolongada pausa, concluiu: simplesmente
isso. Do exterior da casa, na zona da cozinha e dos currais, chegou naquele instante
o ruído simultâneo de vozes e do batimento no lajedo dos cascos de um cavalo.
Briolanja levantou-se imediatamente e, espreitando pela fresta da janela por
onde entrava um feixe de luz pálida como a cor do dia, verificou que não era
ninguém com direito de acesso ao interior do solar. Não há nenhum problema de
sermos vistas, senhora, é o almocreve que acaba de chegar com mercadoria para o
celeiro; está ali à conversa com dois criados.
Leonor temia que algum nobre da
casa, parente próximo ou afastado do conde, as descobrisse, tão perto uma da
outra, numa atitude de estranha cumplicidade, e fosse contar isso a João Afonso
Telo. E este, todos o sabiam, não apreciava que a sobrinha mantivesse contactos
demasiado íntimos com as aias ou camareiras residentes na sua casa. Gostava de
separar as águas. Mais tranquila, não só pela ausência de qualquer empecilho
que lhe estragasse a conversa, mas sobretudo pelos desabafos que lhe iam libertando
a alma de tanto lixo, Leonor Teles prosseguiu: sabes, Briolanja, quero casar,
sim, mas com um homem que eu ame e me queira amar. Já conheci alguns na minha
vida; poucos, é verdade, e tu melhor que ninguém o sabes. Mas por motivos vários,
que agora não vêm ao caso, não consegui alcançá-los. Ou melhor, o senhor conde,
meu estimado tio, não me deixou alcançá-los. E após um instante de silêncio,
acompanhado por um vigoroso soluço, prosseguiu: que hei-de fazer eu à vida?
Diz-me, minha boa amiga, que destino vai ser o meu?» In José Manuel Saraiva, Rosa
Brava, Oficina do Livro, 2005, ISBN 978-989-555-113-2.
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