segunda-feira, 5 de fevereiro de 2018

A Abadia de Northanger. Jane Austen. «O seu pai lhe ensinava a escrever e a fazer contas; a sua mãe, francês. A sua competência em qualquer destas disciplinas não era notável e ela esquivava-se das lições sempre que podia»

Cortesia de wikipedia e jdact

«Ninguém que tenha visto Catherine Morland na sua infância poderia supor que ela tivesse nascido para ser uma heroína. A sua situação na vida, o carácter do seu pai e da sua mãe, a sua própria pessoa e o seu ânimo, tudo se mostrava igualmente contra ela. Seu pai, um clérigo, não era desafortunado ou pobre, um homem muito respeitável, embora o seu nome fosse Richard, e nunca fora bonito. Tinha uma considerável autonomia, além de dois salários; e nem de longe era dado a trancafiar as suas filhas. A sua mãe, dona de um apropriado senso comum, tinha bom temperamento e, o que era mais notável, uma boa constituição. Teve três filhos antes de Catherine nascer. E, ao invés de morrer ao trazer esta última ao mundo, como seria de se esperar, ela ainda viveu, e viveu para ter mais outros seis filhos e vê-los crescer ao seu redor, enquanto gozava de excelente saúde. Uma família de dez filhos sempre será chamada de uma família admirável; em que há cabeças, braços e pernas suficientes para o adjectivo. Mas os Morland tinham outro pequeno direito sobre a palavra, pois eram, em geral, muito correctos, sendo que Catherine, por muitos anos, foi tão correcta quanto os demais. Dona de compleição magra e estranha, pele pálida, sem cor, cabelos pretos escorridos, e traços fortes, excessivamente fortes para a sua pessoa. E não menos inapropriada para o heroísmo parecia a sua mente. Ela era apaixonada pelas brincadeiras dos garotos e preferia críquete não apenas em relação às bonecas, mas também às diversões mais heróicas da infância, como cuidar de um rato do campo, alimentar um canário ou regar uma roseira. Na verdade, ela não gostava do jardim. E se fazia ramalhetes de flores era principalmente pelo prazer de enganar, pelo menos era o que se supunha, pois ela sempre preferia aquelas proibidas de serem colhidas. Tais eram as suas propensões. E as suas habilidades eram bem peculiares. Ela nunca podia aprender ou compreender algo antes de ser ensinada. E, às vezes, nem mesmo assim, pois era muito desatenciosa e, ocasionalmente, estúpida. A sua mãe levou três meses para ensiná-la a repetir Beggar’s Petition, no entanto a sua irmã mais nova, Sally, podia recitá-lo melhor do que ela. Não que Catherine fosse sempre estúpida, de jeito nenhum. Ela aprendeu a fábula The Hare and Many Friends tão rápido quanto qualquer garota na Inglaterra. A sua mãe queria que ela aprendesse música, e Catherine estava certa de que gostaria disso, pois adorava pressionar as teclas da velha e abandonada espineta (similar a um piano ou um cravo, inventado em 1503); assim, começou aos oito anos, estudando por um ano apenas, pois já não aguentava mais. A senhora Morland, que não insistia em tornar prendadas suas filhas, a despeito da incapacidade ou do fastio, permitiu que ela abandonasse os estudos. O dia em que demitiu o professor de música foi um dos mais felizes da vida de Catherine. Seu apreço por desenho não era muito maior, se bem que, sempre que encontrava uma carta jogada fora por sua mãe ou qualquer pedaço de papel, ela fazia o que podia, desenhando casas e árvores, galinhas e galos; tudo parecendo a mesma coisa. O seu pai lhe ensinava a escrever e a fazer contas; a sua mãe, francês. A sua competência em qualquer destas disciplinas não era notável e ela esquivava-se das lições sempre que podia. Que carácter estranho e irresponsável! Com todos esses sintomas de má conduta, ela não tinha um mau coração ou um mau temperamento. Quase nunca era teimosa e muito menos emburrada. Pelo contrário, muito bondosa com os menores, e raramente autoritária. Ela era bem mais barulhenta e irrequieta; odiava o confinamento e a limpeza; e amava, mais do que tudo, rolar pela verde encosta abaixo, atrás de sua casa.
Assim era Catherine Morland aos 10 anos. Aos 15, as aparências se corrigiram. Começou a encaracolar os cabelos e a ansiar por bailes, encorpou e os seus traços suavizaram-se, com exuberância e colorido. Os seus olhos ganharam mais vivacidade e a sua figura, mais imponência. O seu amor pela sujeira deu lugar a uma inclinação pela sofisticação; à medida que crescia, tornava-se mais limpa e mais esperta. Agora tinha o prazer de ouvir, às vezes, seu pai e sua mãe comentavam sobre o seu aprimoramento pessoal. Catherine está tornando-se uma garota muito bonita, ela está quase encantador, eram palavras que agarravam os seus ouvidos, de vez em quando. E como eram bem-vindos tais sons. Parecer-se quase encantadora é uma aquisição mais prazerosa para uma garota de aparência rude, pelos primeiros quinze anos da sua vida, do que para uma garota bonita desde o berço. A senhora Morland era uma mulher muito boa e desejava que os seus filhos tivessem tudo o que almejassem. Mas estava sempre tão ocupada em cuidar e em ensinar os mais novos, que os mais velhos eram deixados a cuidar de si mesmos». In Jane Austen, A Abadia de Northanger, 1802 /1817, Relógio d’Água, 2016, ISBN 978-989-641-596-9.

Cortesia de Rd’Água/JDACT