Papéis.
1991-2003
Escrever
por encomenda
«(…)
Cara
Sandra,
Que
partida tão feia vocês me fizeram: escrevendo de livre vontade para o aniversário
da vossa empresa editorial, descobri que o declive da escrita por encomenda é
fácil de descer e até se faz com gosto. O que irá acontecer agora? Fizeram com
que eu tirasse a tampa e agora a água vai escoar-se toda pelo buraco do
lavatório? Neste momento sinto-me disposta a escrever sobre qualquer coisa. Irão
pedir-me que festeje a aquisição do vosso novo automóvel? Desencantarei algures
uma recordação minha da primeira viagem de automóvel e, linha após linha,
chegarei às felicitações pelo vosso carro novo. Irão pedir-me que dê os
parabéns à vossa gata pelo nascimento dos seus gatinhos? Desenterrarei a gata
que o meu pai, primeiro, me ofereceu e, depois, irritado com os miados, levou
embora e abandonou na estrada para Secondigliano. Irão pedir-me que contribua
com um texto para um vosso livro sobre a Nápoles de hoje? Tomarei como ponto de
partida aquela vez em que receava sair de casa, com medo de encontrar uma
vizinha metediça com quem a minha mãe se insurgira e que pusera fora de casa.
e, palavra puxa palavra, começarei a falar do medo da violência que hoje te
atinge por tabela, enquanto a velha política retoca a maquilhagem e não se
percebe onde está aquilo que é novo e que devemos apoiar. Terei de contribuir
com um donativo para a necessidade feminina de aprender a amar a mãe? Contarei
que a minha mãe me dava a mão com força, na rua, quando eu era pequena,
começarei por aí, aliás, agora que penso nisso, gostaria de o fazer de facto,
conservo uma emoção longínqua da pele contra a pele, ela apertava-me a mão com receio
de eu me soltar e correr pela rua em mau estado e cheia de perigos, eu sentia o
medo dela e tinha medo, e depois encontrarei uma via para desenvolver o meu
trabalhinho até citar com arte Luce Irigaray e Luisa Muraro. As palavras puxam
umas pelas outras, uma página com alguma coerência banal, elegante, triste ou
divertida consegue-se sempre escrever, sobre qualquer tema, vulgar ou sublime, simples
ou complexo, fraco ou essencial.
O
que fazer então. dizer não às pessoas que estimamos e em quem confiamos? Não é
o meu caso. Escrevi as linhas comemorativas, procuro transmitir-vos um sincero
sentimento de apreço pela luta que travaram ao longo de todos estes anos e que
hoje, creio, é ainda mais difícil de vencer. Aqui vai, portanto, a minha
mensagem, parabéns. Desta vez contentei-me em tomar como ponto de partida um pé
de alcaparreira. A seguir, não sei. Poderei inundar-vos de lembranças,
pensamentos, histórias genéricas. O que é preciso? Sinto-me capaz de escrever
por encomenda sobre os jovens de hoje, as coisas execráveis da televisão, Di
Giacomo, Francesco Jovine, a arte do bocejo, um cinzeiro. Tchékhov, o grande
Tchékhov, conversando com um jornalista que queria saber como nasciam as suas
histórias, pegou no primeiro objecto que lhe veio à mão, um cinzeiro,
justamente, e disse-lhe: está a ver isto? Passe por cá amanhã, que eu dou-lhe
um conto intitulado O cinzeiro. Uma anedota engraçada. Mas como e quando
é que o acaso se transforma em necessidade de escrever? Não sei. Só sei que a
escrita tem um lado deprimente, quando os nervos do momento são visíveis.
Então, até a verdade pode parecer falsificada. Por isso. para evitar equívocos.
acrescento à margem, sem alcaparras nem nada, sem literatura, que as minhas
felicitações são verdadeiras e sensibilizadas. Até breve.
Elena»
In
Elena Ferrante, Escombros, 2003, Relógio d’Água Editores, 2016, ISBN
978-989-641-666-9.
Cortesia
de Relógio d’AguaE/JDACT