sábado, 24 de fevereiro de 2018

Por Amor a uma Mulher. Domingos Amaral. «Sim, um dia reinariam em Córdova, mas Zulmira sabia que esse dia ainda não chegara. Às portas de Coimbra, ainda não tinham poder político e força militar…»

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Coimbra, Julho de 1116
«(…) Um dia, agregariam à sua volta as taifas de Sevilha, Badajoz, Mérida, Valência, Saragoça, Silves, e fariam renascer o magnífico califado andaluz. Zulmira sorrira no escuro, agradada. Agora, em Córdova já ninguém lhe virava a cara, como quando decidira casar-se pela segunda vez. Os influentes locais não haviam gostado, as principais famílias estavam satisfeitas com as benesses que recebiam do califa almorávida de Marraquexe e não desejavam perturbações. Hixam Hisn Abi Cherif, o primeiro marido de Zulmira, só fora tolerado pelos berberes almorávidas devido ao seu bom senso e à sua ausência de ambições, mas verem a viúva dele, e mãe das suas filhas, regressar à política de Córdova era uma intensa preocupação. A família de Hixam devia manter-se afastada do poder e da glória, pois o seu nome e as memórias que despertava eram uma trepidação desnecessária. O califado de Córdova desmoronara-se oitenta anos antes numa guerra civil sangrenta, a fitna, estilhaçando-se em pequenos reinos muçulmanos, que só os almorávidas, vindos de Marraquexe, haviam colado outra vez. Ressuscitar o velho califado era uma quimera louca e perigosa, resmungavam muitos cordoveses. Porém, Zulmira não pensava assim. As suas filhas Fátima e Zaida tinham origens reais. Do seu lado, eram bisnetas de Al-Mutamid, o rei-poeta de Sevilha; e do lado de Hixam eram ainda mais importantes. Embora o marido tivesse morrido, as filhas mereciam aspirar ao esplendor. Por isso, quando Taxfin, actual governador de Córdova, lhe começara a fazer a corte, Zulmira aceitara casar com ele. Com o seu segundo matrimónio, a família de Hixam reentrava no palco principal da antiga capital do califado. O Azzahrat abriu-se para ela de novo, como no passado longínquo, quando o seu pai governara a cidade. Zulmira ainda se recordava do harém de Ismail; dos núbios que esfregavam as costas de sua mãe, Zaida, em honra de quem dera o nome à sua segunda filha; dos mil criados que as cercavam; do brilho daquela vida faustosa. Depois da felicidade curta e pacífica que vivera ao lado de Hixam, na serra Morena, regressar ao Azzahrat como mulher do wali Taxfin era a prova irrefutável de que o destino podia ser imprevisível e duro, mas um dia erguia-a de novo ao lugar a que tinha direito.
Que se calassem os invejosos! Ela era neta de Al-Mutamid! Ela era filha de Ismail, antigo wali de Córdova! Ela era a mulher do actual governador, o wali Taxfin!. Ainda mais importante do que tudo isso, no passado ela casara com Hixam Hisn Abi Cherif, de quem tivera duas filhas! Fátima e Zaida eram as herdeiras dos árabes da Andaluzia, provenientes do Iémen e da Síria, que tinham erguido a mais fabulosa civilização que o mundo vira! Os seus antepassados haviam construído setecentas mesquitas em Córdova, entre as quais a maior do mundo árabe, e tinham sido os arquitectos do Azzahrat, que a todos fascinava! Haviam fundado bibliotecas com mais de cem mil livros e trazido a prosperidade às cidades da Hispânia, criando uma cultura rica e aberta, onde até os judeus podiam viver livremente junto de árabes e cristãos! Cem anos antes, Córdova fora o coração de uma maravilhosa época e Zulmira e as filhas eram as representantes dessa glória perdida!
Sim, um dia reinariam em Córdova, mas Zulmira sabia que esse dia ainda não chegara. Às portas de Coimbra, ainda não tinham poder político e força militar para se revoltarem contra o califa Ali Yusuf, ou para o matar. Era cedo. Contudo, era preciso saber ler as estrelas: esta súbita decisão de levantar o cerco e partir de Coimbra seria excelente para as suas ambições e de seu marido, Taxfin. O almorávida Ali Yusuf abandonava a cidade cristã sem a tomar e perdia prestígio e apoiantes. Fora esse o pensamento que tivera logo pela manhã, quando começaram os preparativos para a partida, e agora que via aquela tremenda confusão a tomar conta do acampamento, Zulmira sentia um secreto contentamento dentro do seu coração. Quanto mais balbúrdia, mais o califa Ali Yusuf se perdia. Um dia, contar-se-iam histórias sobre o fiasco que fora a expedição almorávida a Coimbra!» In Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal, Por Amor a uma Mulher, Casa das Letras, 2015, ISBN 978-989-741-262-2.

Cortesia de CdasLetras/JDACT