Coimbra,
Julho de 1116
«(…) Um dia, agregariam à sua
volta as taifas de Sevilha, Badajoz, Mérida, Valência, Saragoça, Silves, e
fariam renascer o magnífico califado andaluz. Zulmira sorrira no escuro,
agradada. Agora, em Córdova já ninguém lhe virava a cara, como quando decidira
casar-se pela segunda vez. Os influentes locais não haviam gostado, as principais
famílias estavam satisfeitas com as benesses que recebiam do califa almorávida
de Marraquexe e não desejavam perturbações. Hixam Hisn Abi Cherif, o primeiro
marido de Zulmira, só fora tolerado pelos berberes almorávidas devido ao seu
bom senso e à sua ausência de ambições, mas verem a viúva dele, e mãe das suas filhas,
regressar à política de Córdova era uma intensa preocupação. A família de Hixam
devia manter-se afastada do poder e da glória, pois o seu nome e as memórias
que despertava eram uma trepidação desnecessária. O califado de Córdova
desmoronara-se oitenta anos antes numa guerra civil sangrenta, a fitna, estilhaçando-se em pequenos
reinos muçulmanos, que só os almorávidas, vindos de Marraquexe, haviam colado
outra vez. Ressuscitar o velho califado era uma quimera louca e perigosa,
resmungavam muitos cordoveses. Porém, Zulmira não pensava assim. As suas filhas
Fátima e Zaida tinham origens reais. Do seu lado, eram bisnetas de Al-Mutamid,
o rei-poeta de Sevilha; e do lado de Hixam eram ainda mais importantes. Embora
o marido tivesse morrido, as filhas mereciam aspirar ao esplendor. Por isso,
quando Taxfin, actual governador de Córdova, lhe começara a fazer a corte,
Zulmira aceitara casar com ele. Com o seu segundo matrimónio, a família de
Hixam reentrava no palco principal da antiga capital do califado. O Azzahrat
abriu-se para ela de novo, como no passado longínquo, quando o seu pai
governara a cidade. Zulmira ainda se recordava do harém de Ismail; dos núbios que
esfregavam as costas de sua mãe, Zaida, em honra de quem dera o nome à sua
segunda filha; dos mil criados que as cercavam; do brilho daquela vida
faustosa. Depois da felicidade curta e pacífica que vivera ao lado de Hixam, na
serra Morena, regressar ao Azzahrat como mulher do wali Taxfin era a prova irrefutável de que o destino podia ser
imprevisível e duro, mas um dia erguia-a de novo ao lugar a que tinha direito.
Que se calassem os invejosos! Ela
era neta de Al-Mutamid! Ela era filha de Ismail, antigo wali de Córdova! Ela era a mulher do actual governador, o wali Taxfin!. Ainda mais importante do
que tudo isso, no passado ela casara com Hixam Hisn Abi Cherif, de quem tivera
duas filhas! Fátima e Zaida eram as herdeiras dos árabes da Andaluzia,
provenientes do Iémen e da Síria, que tinham erguido a mais fabulosa
civilização que o mundo vira! Os seus antepassados haviam construído setecentas
mesquitas em Córdova, entre as quais a maior do mundo árabe, e tinham sido os
arquitectos do Azzahrat, que a todos fascinava! Haviam fundado bibliotecas com
mais de cem mil livros e trazido a prosperidade às cidades da Hispânia, criando
uma cultura rica e aberta, onde até os judeus podiam viver livremente junto de
árabes e cristãos! Cem anos antes, Córdova fora o coração de uma maravilhosa
época e Zulmira e as filhas eram as representantes dessa glória perdida!
Sim, um dia reinariam em Córdova,
mas Zulmira sabia que esse dia ainda não chegara. Às portas de Coimbra, ainda
não tinham poder político e força militar para se revoltarem contra o califa
Ali Yusuf, ou para o matar. Era cedo. Contudo, era preciso saber ler as
estrelas: esta súbita decisão de levantar o cerco e partir de Coimbra seria
excelente para as suas ambições e de seu marido, Taxfin. O almorávida Ali Yusuf
abandonava a cidade cristã sem a tomar e perdia prestígio e apoiantes. Fora
esse o pensamento que tivera logo pela manhã, quando começaram os preparativos
para a partida, e agora que via aquela tremenda confusão a tomar conta do
acampamento, Zulmira sentia um secreto contentamento dentro do seu coração.
Quanto mais balbúrdia, mais o califa Ali Yusuf se perdia. Um dia, contar-se-iam
histórias sobre o fiasco que fora a expedição almorávida a Coimbra!» In
Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal, Por Amor a uma Mulher, Casa das Letras,
2015, ISBN 978-989-741-262-2.
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