Hetep-Heres, a mãe de Queops
O
tesouro da rainha, mãe do rei
«(…) O equipamento que levou para
o Além era notável: baixela em ouro, um dossel em madeira e cadeirões
revestidos a ouro, uma cama e a sua cabeceira, colares, cofres, recipientes de
cobre e de pedra, pulseiras de prata com incrustações de cornalina, lápis-
lazúli e turquesa, um pequeno cofre de madeira dourada contendo dois rolos para
guardar estas jóias. Obras-primas como as bandejas e as taças de ouro, ou o
pote de cobre, demonstram o génio dos artífices do Antigo Império. A peça mais
extraordinária é por certo a liteira, descoberta em peças soltas e depois
montada e exposta no Museu do Cairo, com outros elementos deste tesouro de uma
espantosa perfeição, que só por si revela o requinte da corte de Snefru e de
Quéops, o seu amor pela sobriedade e pela pureza das linhas. Importante
pormenor: estas maravilhas criadas para a eternidade, e não para o mundo passageiro
dos humanos, estavam destinadas aos paraísos do Além onde vive a alma de
Hetep-Heres. Graças aos adornos, a sua beleza permanecerá inalterável; graças à
preciosa baixela, poderá celebrar um banquete perpétuo.
A magnífica
liteira da mãe de Quéops é um símbolo associado à sua função. De facto, a
rainha do Egipto possuía os espantosos títulos de lite ira de Hórus e de liteira
de Set; também se chamava a Grande que é uma liteira. Aparecia assim como o
suporte em movimento dos deuses Hórus e Set, os irmãos inimigos que se reúnem e
apaziguam na pessoa do faraó. Assim como Ísis é o trono de onde nasce o rei do
Egipto, a rainha é a liteira que permite ao monarca deslocar-se, e portanto estar em acção.
Os títulos da
grande dama informam-nos acerca das suas tarefas rituais: mãe do rei do Alto e Baixo Egipto,
companheira de Hórus, superiora dos talhantes da Casa da Acácia, para a qual
tudo o que ela formula se realiza, filha do deus, do seu corpo, Hetep-Heres.
A Casa da Acácia está associada
ao mistério da ressurreição, ao qual todas as rainhas estiveram ligadas. Mas
debrucemo-nos por um instante sobre o título de mãe do rei, que será utilizado
até à última dinastia. Dizemos título porque é certo que a expressão não
designa obrigatoriamente a mãe carnal de um faraó. A filiação corporal é proclamada, mas é impossível
afirmar a existência de laços familiares mais concretos. A mãe do rei
tinha o direito de transmitir ao futuro faraó a energia constantemente produzida
pelo universo divino; por isso está muitas vezes presente ao lado do monarca durante
os grandes ritos e encarna a continuidade dinástica. Presta-se culto à mãe
do rei na sua qualidade de origem espiritual da monarquia. O leito de
ressurreição de Hetep-Heres, admiravelmente confeccionado, servia não só para o
eterno repouso da grande rainha mas também para a sua perpétua união com o
princípio criador para que gerasse o rei.
Nota: Uma das
palavras que serve para indicar a liteira, betes, é também o nome de um
dos ceptros utilizados pela rainha e que lhe permite, nomeadamente, consagrar
um edifício transformando-o em centro de produção de energia sagrada.
A arqueologia deve ser rigorosa e
científica, mas é praticada por homens e mulheres que inevitavelmente
interpretam os factos em função dos seus conhecimentos e do seu nível de consciência.
No início do século XX, sábios reconhecidos como o alemão Erman consideravam a
religião egípcia como um monte de tolices; recentemente, Jan Assmann, outro
egiptólogo alemão, demonstrou que o pensamento egípcio, mais preocupado com o conhecimento
do que com a crença, constitui uma dimensão espiritual insubstituível e insubstituída.
Por muito arqueólogo que fosse, Reisner não se contentou com o estudo objectivo
da sepultura da rainha Hetep-Heres. A ausência de superestrutura e a
dissimulação propositada do jazigo levavam a crer no carácter secreto da
sepultura. Mas porquê este segredo?
E
Reisner pôs-se a imaginar. Sendo esposa de Snefru, construtor de duas grandes
pirâmides na estação de Dachur, Hetep-Heres teria sido aí enterrada para ficar perto do marido. Infelizmente,
talvez os ladrões
tivessem saqueado a sua sepultura, lançando Snefru num profundo desespero. Este
teria, pois, decidido
retirar os despojos da sua esposa do túmulo de Dachur a fim de a esconder para
sempre no jazigo secreto de Gize, mas a múmia destruiu-se provavelmente durante o
transporte e ninguém teria ousado
anunciá-lo ao rei. Eis o motivo por que a sepultura secreta de Gize estava
vazia! Se sublinhámos as hipóteses, foi porque esta trágica história só existiu
na imaginação de Reisner. Infelizmente, foi por vezes recopiada como uma
verdade histórica...» In Christian Jacq, As Egípcias, Edições ASA,
2002, ISBN-978-972-413-062-0.
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