domingo, 4 de fevereiro de 2018

Estou Nua e Agora? Francisco Salgueiro. «A última coisa que quero é ficar fechada dentro de um avião, disse a Jen, que continuava a andar de um lado para o outro, muito rapidamente, acompanhada por uns uivos»

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São Francisco
«(…) Oh não! Estou em Reno. Devia estar a apanhar o voo para Nova Iorque. Isto ainda não vos tinha contado. A festa fora no sábado, no domingo deveria regressar para Nova Iorque, depois de quatro anos de faculdade em São Francisco, porque na segunda-feira ia começar a trabalhar na law firm do pai da Jen, em Manhattan. Sentei-me no único centímetro da cama que não estava ocupado e pus as mãos na cabeça. Estou a ver tudo a andar à roda, disse a Jen, abrindo os olhos e olhando para mim. Onde é que nós estamos? Reno. Reno?!, disse, histérica. O que é que estamos aqui a fazer?! Aposta. Perdemos. Nós. Oh my god, oh my god…, disse, levantando-se de imediato. E o nosso voo para Nova Iorque? Perdemos. A Jen era minha amiga desde muito pequena. Tínhamos decidido tirar o curso em São Francisco, para ficarmos longe dos nossos pais. Tal como eu, na segunda-feira ela ia começar a trabalhar na law firm do pai dela. Trabalharmos as duas naquele sítio era a única coisa boa. Não me apetecia nada perder a liberdade ganha em São Francisco. E se apanharmos um voo directo daqui?, perguntou. Não achas que as malas vão ficar tristes se as deixarmos em São Francisco? Ela começou a andar de um lado para o outro, muito depressa, e a falar ainda mais depressa. Com incontinência verbal, foi relatando as várias hipóteses. Tentou, mas não saiu nada de jeito. A única hipótese real é apanharmos um voo de Reno para São Francisco e depois um red eye para Nova Iorque, afirmei.
A última coisa que quero é ficar fechada dentro de um avião, disse a Jen, que continuava a andar de um lado para o outro, muito rapidamente, acompanhada por uns uivos. Não podia ser um lobo porque não há lobos dentro de quartos de hotel. Por isso, só poderia ser. Pára de me dar pontapés. Eram as vozes das pessoas que estavam deitadas no chão a reclamarem por estarem a ser pisadas. Os uivos entraram em efeito dominó e, aos poucos, todas as pessoas começaram a acordar, enquanto olhavam umas para as outras, pensando quem és tu? Onde é que eu estou? Estávamos em piloto automático, quando ouvimos um estrondo na porta. Abram a porta! Nos primeiros segundos, nenhum de nós foi capaz de dizer o que quer que fosse. Talvez fossem as empregadas. Sim, era isso. Eram empregadas que tinham uma voz muito grossa. Vá-se embora. Não precisamos do quarto limpo, afirmei. Mais quatro batidelas na porta com imensa força. Abram já a porta!, voltou a dizer a voz. O que é que quer?, perguntei, visto ser a única que já estava acordada há mais tempo e tinha alguma capacidade para articular frases complexas. Somos da polícia. Abra já a porta! Polícia?! Oh não. O que teríamos feito na noite anterior? Lembrei-me logo das fotos. Surfando em cima de cadeiras, roubando comida da cozinha. A Jen olhou para mim em pânico.
Subitamente, parecia estar na linha de partida da maratona de Nova Iorque. Quase todas as pessoas que estavam deitadas no chão e na cama, levantaram-se como se tivessem apanhado uma descarga eléctrica e foram a correr para a casa de banho. Olhei para a Jen perguntando: o que é que se está a passar? Abram a porta! Polícia! Na casa de banho, comecei a ouvir o autoclismo ser descarregado várias vezes. A fila era grande e todos queriam desfazer-se de qualquer coisa que tinham dentro dos bolsos. É a última vez que vos digo. Abram a porta! Polícia! Sei o que estão aí a esconder. A Jen veio a correr ter comigo e abraçou-se com força. Haxixe. É isso que estão a deitar na retrete. Oh não. Achas que nos vão prender? Vamos contar até três. Se não abrirem a porta, deitamo-la abaixo…1…, 2…, 3». In Francisco Salgueiro, Estou Nua e Agora?, Editora Oficina do Livro, 2014, ISBN 978-989-741-159-5.

Cortesia EOLivro/JDACT