«(…) Também se podia morrer de
coisas que pareciam normais. Podíamos morrer, por exemplo, se estivéssemos a transpirar
e bebêssemos água fria da torneira sem ter molhado os pulsos primeiro. Ficávamos
cobertos de pontinhos vermelhos, tínhamos um ataque de tosse e não conseguíamos
respirar. Podíamos morrer se comêssemos cerejas pretas sem cuspir o caroço.
Podíamos morrer se mastigássemos pastilhas elásticas americanas e por distracção
as engolíssemos. Podíamos morrer, sobretudo, se levássemos uma pancada na têmpora.
A têmpora era um ponto muito frágil, dávamos todas muita atenção a isso.
Bastava uma pedrada, e as pedradas eram a regra. À saída da escola, um bando de
rapazes do campo chefiado por um que se chamava Enzo ou Enzuccio, um dos filhos
de Assunta, a vendedora de fruta e hortaliça, começou a atirar-nos pedras. Sentiam-se
ofendidos por sermos melhores alunas do que eles. Quando as pedras vinham direito
a nós fugíamos todas, menos Lila, que continuava a andar no seu passo normal e às
vezes até parava. Era muito esperta a calcular a trajectória das pedras e a evitá-las
com um movimento calmo, hoje diria elegante. Tinha um irmão mais velho e talvez
tivesse aprendido com ele, não sei, eu também tinha irmãos, mas mais novos do que
eu e nunca aprendera nada com eles. Mas quando notava que ela ficara para trás,
parava e esperava por ela, embora cheia de medo.
Já nesse tempo havia qualquer
coisa que me impedia de abandoná-la. Não a conhecia bem, nunca tínhamos trocado
uma palavra, apesar de estarmos sempre a competir uma com a outra, na aula e fora
dela. Mas tinha a vaga sensação de que se fugisse, como as outras. deixaria com
ela algo de meu que ela nunca mais me restituiria. A princípio ficava escondida
em qualquer canto e espreitava para ver se Lila já aí vinha. Depois, como ela
não se mexia, sentia-me na obrigação de ir ter com ela, passava-lhe as pedras, atirava-as
também. Mas fazia-o sem convicção, fiz muitas coisas na vida mas sem convicção,
sempre me senti um bocado desligada das minhas acções. Ao passo que Lila tinha,
desde pequena, agora não consigo precisar se aos seis ou se aos sete anos, ou se
quando subimos juntas as escadas que iam ter a casa de don Achille e tínhamos oito,
quase nove, uma total determinação como característica. Quer empunhasse o cabo tricolor
da caneta, ou uma pedra, ou o corrimão das escadas escuras, transmitia a ideia de
que aquilo que se seguia, espetar a caneta na madeira da carteira com um
movimento preciso, atirar bolinhas ensopadas em tinta. acertar nos rapazes do campo,
subir até à porta de don Achille, seria feito semhesitações.
O bando vinha do aterro do caminho-de-ferro,
fornecendo-se de pedras no meio dos carris. Enzo, o cabecilha, era um menino muito
perigoso, tinha pelo menos mais três anos do que nós, era repetente, tinha cabelos
loiros muito curtos e olhos claros. Lançava com precisão pedras pequenas com rebordos
afiados, e Lila aguardara os tiros dele para lhe mostrar como os evitava,
fazê-lo irritar-se ainda mais e responder de imediato com tiros igualmente perigosos.
Uma vez atingimo-lo no artelho direito, e digo atingimo-lo porque eu é que
entregara a Lila uma pedra achatada com os bordos todos lascados. A pedra roçou
pela pele de Enzo como uma lâmina, deixando-lhe uma marca vermelha de onde saiu
imediatamente sangue. O menino olhou para a perna ferida, parece que ainda
estou a vê-1o. Tinha entre o polegar e o indicador a pedra que se preparava
para atirar. O braço já estava no ar para fazer o lançamento, mas deteve-se.
estupefacto. Os rapazes que ele comandava também olharam incrédulos para o sangue.
Lila, porém, não mostrou a mínima satisfação pelo êxito da pedrada e baixou-se para
apanhar outra. Eu agrrei-a por um braço, foi o nosso primeiro contacto físico, um
contacto brusco e assustado. Pressenti que o bando se enfureceria mais e queria
que nos afastássemos. Mas não houve tempo. Enzo, apesar de ter o artelho a sangrar,
recuperou do espanto e lançou a pedra que tinha na mão. Ainda estava agarrada ao
braço de Lila quando a pedrada a atingiu na fronte, arrancando-ma da mão. No instante
seguinte estava estendida no passeio com a cabeça partida». In Elena
Ferrante, A Amiga Genial, 2011, Relógio d’Água, 2014, ISBN 978-989-641-479-5.
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