sexta-feira, 2 de fevereiro de 2018

A Amiga Genial. Elena Ferrante. «Lila entrou na minha vida na primeira classe e impressionou-me de imediato porque era muito má. Naquela turma éramos todas um bocadinho más…»

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«(…) Nu e Tina não eram felizes. Os terrores que nós saboreávamos todos os dias eram os delas. Não confiávamos na luz que incidia sobre as pedras, sobre os prédios, sobre os campos, sobre as pessoas fora e dentro de casa. Pressentíamos-lhe os cantos negros, os sentimentos reprimidos mas sempre quase a explodir. E atribuíamos a essas bocas escuras, às cavernas que por trás delas se abriam sob os prédios do bairro, tudo aquilo que nos assustava à luz do dia. Don Achille, por exemplo, não estava apenas em sua casa, no último andar, mas também ali em baixo, uma aranha entre as aranhas, um rato entre os ratos, uma forma que assumia todas as formas. Imaginava-o de boca aberta por causa das compridas presas de animal, corpo de pedra vidrada e ervas venenosas, sempre pronto para recolher num grande saco negro tudo o que deixávamos cair pelos cantos soltos da rede. Esse saco era um aspecto fundamental de don Achille, tinha-o sempre consigo, até em casa, e nele metia matéria viva e morta. Lila sabia que eu tinha aquele medo, a minha boneca falava disso em voz alta. Por isso, logo no dia em que trocámos de bonecas pela primeira vez sem combinar sequer, só com olhares e gestos, ela, assim que lhe entreguei Tina, enfiou-a pela rede e deixou-a cair para o escuro.
Lila entrou na minha vida na primeira classe e impressionou-me de imediato porque era muito má. Naquela turma éramos todas um bocadinho más, mas só quando a professora Oliviero não conseguia ver-nos. Ela, porém, era má sempre, pior do que os rapazes. Uma vez rasgou o papel mata-borrão em pedacinhos, enfiou-os um a um no tinteiro e depois pôs-se a pescá-los com o aparo e a atirá-los para cima de nós. Eu fui atingida duas vezes no cabelo e uma vez na gola branca. A professora berrou como só ela sabia, com uma voz de agulha que nos atemorizava, longa e pontiaguda, e mandou-a imediatamente para o castigo, atrás do quadro. Lila não obedeceu, nem sequer pareceu ter-se assustado, pois continuou a atirar bocados de mata-borrão ensopados em tinta para todos os lados. Então a professora Oliviero, uma mulher pesadona que nos parecia muito velha, embora devesse ter pouco mais de quarenta, desceu do estrado ameaçando-a, tropeçou não se sabe bem em quê, não conseguiu equilibrar-se e foi bater com a cara na quina de uma carteira. Ficou caída no chão como morta. O que aconteceu logo a seguir não me recordo, lembro-me apenas do corpo imóvel da professora, uma trouxa escura, e Lila a olhar para ela de cara séria.
Tenho na lembrança muitos incidentes deste tipo. Vivíamos num mundo em que crianças e adultos se feriam com frequência, as feridas sangravam, supuravam, e eles por vezes morriam. Uma das filhas de dona Assunta. a vendedora de fruta e hortaliça, ferira-se com um prego e morrera de tétano. O filho mais novo da senhora Spagnuolo morrera de garrotilho. Um primo meu que tinha vinte anos foi uma manhã remover entulho e à noite estava morto, esmagado, com sangue a sair-lhe dos ouvidos e da boca. O pai da minha mãe trabalhava na construção de um edifício, caiu dele abaixo e morreu. O pai do senhor Peluso não tinha um braço, o torno arrancara-lho à traição. A irmã de Giuseppina, mulher do senhor Peluso, morrera de tuberculose aos vinte e dois anos. O filho adulto de don Achille, nunca o vi mas parecia-me que me lembrava dele, fora para a guerra e morrera duas vezes: primeiro, afogado no oceano Pacífico, e depois comido pelos tubarões. Os da família Melchiorre tinham morrido todos abraçados, a gritar de medo, debaixo de um bombardeamento. A velha dona Clorinda morrera por respirar gás em vez de ar. Giannino, que andava na quarta quando nós andávamos na primeira, um dia morreu porque encontrou uma bomba e mexeu-lhe. Luigina, com quem tínhamos brincado no pátio, ou talvez não, era apenas um nome, morrera de tifo. O nosso mundo era assim, cheio de palavras que matavam: o garrotilho, o tétano, o tifo, o gás, a guerra, o torno, o entulho, o trabalho, o bombardeamento, a bomba, a tuberculose, a supuração. Remeto para essas palavras e para aqueles anos os muitos medos que me têm acompanhado toda a vida». In Elena Ferrante, A Amiga Genial, 2011, Relógio d’Água, 2014, ISBN 978-989-641-479-5.

Cortesia de Rd’Água/JDACT