«(…) Já ninguém acalmava os cruzados eufóricos. Konrad e Hadwig
suspiraram conformados. A cidade esconderia mesmo um tesouro subterrâneo? Iria
o rei português autorizar um saque? Ninguém sabia respostas para estas
perguntas. Mas todos estavam resolvidos a não arrancar pé dali, enquanto
Lusbuna não estivesse sob poder cristão. El-rei convocou uma reunião com os quinze
mil cruzados e os guerreiros portugueses. Como a sua mensagem seria traduzida
pelos clérigos, que se espalhariam pelo campo, os estrangeiros deixaram as primeiras filas aos locais. Konrad
misturou-se porém entre estes últimos. Não lhe interessava tanto a mensagem,
como o homem por quem eles iriam lutar. Os súbditos de Afonso Henriques já o
tinham elevado ao estatuto de lenda. E não só por ele se ter libertado do jugo
de seu primo Afonso VII, que se intitulava imperador de toda a Hispânia.
Contava-se que Jesus Cristo lhe aparecera na noite anterior a uma batalha
contra os mouros e lhe prometera a vitória. Por isso os portugueses se lançaram
à luta, apesar de o seu exército contar com menos de metade dos guerreiros das
tropas inimigas, comandadas por cinco reis mouros... E venceram!
Konrad
conseguiu um lugar nas primeiras filas, que se apertavam em frente de um
pequeno morro, o púlpito improvisado para o discurso. El-rei surgiu montado no
seu cavalo castanho de sangue árabe. A seu lado, encontrava-se o bispo do
Porto, Pedro Pitões, que traduziria as suas palavras em latim. Os fidalgos
portugueses e estrangeiros posicionaram-se atrás deles, em jeito de escolta. A
montada real estava coberta por uma manta branca, ornada em todos os quatro
cantos com uma cruz azul, o brasão português. Em cima do cavalo, Konrad viu um
homem alto e forte, que apesar do calor se
apresentava completamente armado. Na sua cabeça pousava o elmo cónico com
protecção nasal, que deixava o rosto livre. Konrad deu-se assim conta de um
olhar escuro e autoritário e de um bigode preto. Em cima dos ombros largos
caíam cabelos ondulados. A cota de malha, que quase lhe chegava aos joelhos,
estava polida e reluzia debaixo da cota de armas branca, desprovida de mangas,
e que apresentava sobre o peito a cruz azul de Portugal. O manto real,
igualmente azul, era segurado sobre o ombro direito por uma fíbula de ouro.
Botas de couro e acicates brilhantes completavam a figura do monarca. Esta
aparição logo silenciou os portugueses, subjugados à veneração, transbordando
de confiança cega. Este povo, pensou Konrad, atirar-se-ia para as labaredas
eternas do inferno, fora esse o desejo de Afonso Henriques. Ele próprio admitia
que a simples presença do homem impunha mais respeito do que a de outros
vociferando palavras ameaçadoras. E quando Konrad ouviu a voz real, teve a
certeza de que ela atravessava o vasto campo, troava sobre as cabeças de
milhares de homens, ouvindo-se até às últimas filas. Como ele entendia um pouco
do latim que o bispo do Porto emanava, traduzindo as palavras do seu soberano, percebeu que Afonso agradecia aos
cruzados pela ajuda e prometia recompensas, glória e poder. Lembrou que o papa
Urbano II, na sua pregação pelas primeiras cruzadas há cinquenta anos atrás,
chamara a atenção para o facto de que o combate contra os mouros na Hispânia
não poderia ser menos importante do que a conquista de Jerusalém. Afonso
Henriques explicou como as tropas se deveriam distribuir no terreno e no fim
Konrad, apesar de não ter entendido nem metade, quase jubilou com os outros,
entusiasmado com o carisma e a voz do rei. Mas só quase! Ali, longe das
muralhas e do feitiço que Lusbuna havia exercido sobre ele, aquele cerco
representava uma perda de tempo nos seus planos.
Desobedecendo
às ordens do pai, Aischa escapulira-se de casa. As mulheres estavam proibidas
de sair, desde que os cruzados tinham chegado, mas a moça não achava que
houvesse grande perigo. Apesar dos majus já se encontrarem junto à foz do Wâdi
Tâjuh há uma semana, ainda não tinham montado cerco. Desconfiava-se até que não
se entendiam com os portugueses, embora já tivessem desferido um rude golpe nos
habitantes da cidade, ao descobrirem a maior matmúrâ que havia fora de muros.
Agora, já ninguém conseguiria ir lá buscar as preciosas reservas, o que se
podia revelar trágico em caso de cerco prolongado» In
Cristina Torrão, A Cruz de Esmeraldas, Edição Ésquilo, 2009, ISBN
978-989-809-261-8.
Cortesia de Ésquilo/JDACT