segunda-feira, 26 de fevereiro de 2018

A Sibila. Agustina Bessa Luís. «Esperava manter secreto este passo até que a história de Isidra chegasse a um natural epílogo; ou, possivelmente, preferia não encarar de frente qualquer solução»

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«(…) Partiam estafetas com ordens e avisos, e, entre suspiros de cólera, as vendedeiras salgavam nos alguidares de barro os tremoços, dispondo, nas mesas adornadas com um ramo de cravos bravos da Índia, os copos embaciados onde vertiam limonadas e refrescos de aguardente. Os foguetes explodiam, deixando no ar pompons de fumo alvo que lentamente se deslocava e diluía. Quem é o homem?, disse Isidra. Fechara o leque sobre o regaço, repuxando as suas mitenes de malha de seda preta. Olhava Francisco Teixeira, viu como ele, esgotando os adversários, se detivera no largo varrido, verificando a solidez do varapau, que varava o ar com silvos prolongados. Depois, calmo, afastou-se por entre a multidão, e nem uma vez se voltou. Isidra ficou-se na escada até tarde, batendo, absorta, com o leque nos joelhos, fixando os copinhos de papel escarlate que balançavam suspensos por barbantes e às vezes ardiam, despenhando-se as fagulhas sobre a praçazinha coalhada de povo. Na sala, atrás de si, as senhoras bebericavam chá, comunicando-se as receitas dos acepipes que provavam com suaves estalinhos de língua, de aprovação, de entendimento, de gula. Eram mulheres que se espartilhavam em barbas de baleia, sinistramente iguais, e que usavam ganchos bafientas sobre os cabelos que pareciam brunidos, penteados com o único intuito de ficarem arrumados. Vem para dentro, menina. Olha esse relento. Sobre os tremós cintilavam os pingentes dos candeeiros onde se derretiam as velas. Um largo espelho de caixilho de esmalte branco com filetes de oiro reflectia aquela reunião, os homens medonhos, com coletes acolchoados, e que falavam, preguiçosamente, das finanças e da política, as santas criaturas que cochichavam agravos de parentela e de criados, empinando pelas ventas dedadas de rapé. Isidra entrou na sala, mordiscou uma cavaca, chegou-se ao piano, onde apoiou o indicador, experimentando uma escala. Vida estuporada!, disse. O fidalgo de Lago, negro como um moiro e que explicava o loiro dos filhos pelo processo de lhes banhar a cabeça com cerveja quando nasciam, observou-a de través. Odiava os de Borba, parentes seus, rivais na opulência das casas, na excentricidade, nas espaventosas histórias de cavalos e de mulheres. Famoso ninho que tais pegas dá, falou, para si, como costumava dizer, com essa espécie de espírito que era como um atributo da sua cólera. Isidra captou a frase, sem a ouvir. Quando, logo depois, ele lhe perguntou, com um ressaibo de velha galantaria, quase lânguido, se ela gostava de versos, Isidra disse-lhe, com uma arrogância fria, sem mesmo o olhar: versos? Meta-os pelo rabinho acima… O de Lago passou a temê-la, o que, dizia Isidra, era muito melhor do que se a respeitasse. Caprichou a moça nos seus amores com Francisco Teixeira. Era fogosa e indomável, e, passados os primeiros arroubos da conquista, ele fatigou-se dos seus repentes de despeito, das suas juras que previam desagravos de traições, das suas corridas pela quinta, que ela atravessava noite alta para comparecer aos encontros, embuçada numa mantilha de renda de lã negra, os cabelos escorrendo-lhe pelas costas, pesados, trazendo enredadas as gavinhas secas que se desprendiam dos lódãos. Ela não o amava, apenas se lhe entregava por desafio ao nome que comprometia, pois à vertigem da sua queda sucedera a preocupação pelo seu orgulho. Francisco Teixeira enfadou-se depressa daquele temperamento tão viril, daquela voz ferina e fria que lhe impunha ordens e que, no fim de contas, o desfrutava. Gostava das mulheres submissas, mansas, que o admirassem sem jamais adquirirem a confiança de especificar, decompor, calcular, essa admiração. Mas Isidra ia ser mãe, e ele receava-a. Talvez para evitar a tentação daquela imperiosa criatura cujos ardores, cujos olhares terríveis o venciam e cuja fortuna lhe parecia um subsídio notável para uma vida de camarilha com arruaceiros e ciganas, ele casou precipitadamente com Maria. Esperava manter secreto este passo até que a história de Isidra chegasse a um natural epílogo; ou, possivelmente, preferia não encarar de frente qualquer solução, e o facto de se ligar irremediavelmente a Maria representasse um golpe de defesa que corrigiria muitos dos desvarios a que se sabia sujeito. Este traço do seu carácter transmitiu-se depois a quase todos os filhos, e podia definir-se pelo estilo hamletiano, o choco de indecisão, a cobardia da violência, que se resgatam de súbito com um acto que transcende toda a razão». In Agustina Bessa Luís, A Sibila, 1954, Relógio d’Água, 2017, ISBN 978-989-641-747-5.

Cortesia de Rd’Água/JDACT