segunda-feira, 5 de fevereiro de 2018

A Abadia de Northanger. Jane Austen. «A sua maior deficiência estava no lápis. Não tinha noção de desenho, nem mesmo para tentar um esboço do perfil do seu amado, o qual ela poderia encontrar no desenho»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Deste modo, não era muito intrigante que Catherine, que por natureza nada tinha de heróica em si, preferisse, na idade de 14 anos, críquete, beisebol, montar a cavalo e correr pelos campos, a livros, ou, pelo menos, livros educativos. No entanto, dado que nada como um conhecimento útil poderia ser obtido disso e que eram apenas histórias e não reflexões, ela nunca tinha qualquer objecção a livros. Mas, dos 15 aos 17 anos, ela estava treinando para se tornar uma heroína. Leu todos os livros que as heroínas deveriam ler para fornecer nas suas memórias aquelas citações que eram tão úteis e tranquilizantes durante as vicissitudes das suas agitadas vidas. Com Pope, ela aprendeu a censurar aqueles que fazem zombaria dos aflitos. Com Gray, que muitas flores nascem para florir sem serem vistas, e desperdiçam a sua fragrância no ar deserto. Com Thompson, que é uma deliciosa tarefa ensinar a uma jovem a ideia de como se desenvolver. E, de Shakespeare, ela guardou muita informação, dentre todas, que fios leves como o ar são, para o ciumento, confirmação evidente como provas das Santas Escrituras. E ainda, que o pobre insecto, quando pisado, sente, em sofrimento corporal, uma dor tão grande quanto a de um gigante que morre; e que uma jovem mulher apaixonada sempre se mostra como a Paciência num monumento, sorrindo para a dor.
Até então, o seu aprimoramento era suficiente, e, em muitos outros aspectos, ela ia muito bem. Embora não pudesse escrever sonetos, obrigava-se a lê-los, e embora parecesse não haver chances de levar todo um grupo às lágrimas num prelúdio ao piano que ela mesma compusera, podia ouvir o desempenho de outros, sem o menor cansaço. A sua maior deficiência estava no lápis. Não tinha noção de desenho, nem mesmo para tentar um esboço do perfil do seu amado, o qual ela poderia encontrar no desenho. Era quando ficava miseravelmente menor que a verdadeira altura heróica. Até ao momento, ela não conhecia a sua própria miséria, pois não tivera um amado para retratar. Ela chegou aos 17 anos sem ter visto um jovem amável que pudesse despertar a sua sensibilidade, sem ter inspirado uma paixão verdadeira, e sem ter levantado mesmo qualquer admiração, além daquelas moderadas e passageiras. Isto era, de facto, estranho! Mas as coisas estranhas podem ser geralmente explicadas, se a sua causa for pesquisada com isenção. Não havia nenhum lorde na vizinhança, nem mesmo um barão; não havia nenhuma família nos seus relacionamentos que tivesse abrigado e cuidado de um garoto acidentalmente encontrado na sua porta, nenhum jovem rapaz cuja origem fosse desconhecida; o seu pai não tinha nenhum protegido; e o escudeiro da paróquia, nenhum filho.
Mas, quando uma jovem dama é predestinada a ser uma heroína, a perversidade de quarenta famílias ao redor não pode detê-la. Algo deve, e irá, acontecer para lançar um herói no seu caminho. O senhor Allen, que era o proprietário da maior parte das terras perto de Fullerton, a vila em Wiltshire onde viviam os Morland, foi enviado a Bath para cuidar da sua gota, e a sua esposa, uma mulher bem-humorada, que gostava da senhorita Morland, e provavelmente ciente de que, se as aventuras não recaíssem sobre uma jovem dama na sua própria vila, ela iria buscá-las noutro lugar, convidou-a a acompanhá-los. O senhor e a senhora Morland eram só condescendência, e Catherine, só felicidade». In Jane Austen, A Abadia de Northanger, 1802 /1817, Relógio d’Água, 2016, ISBN 978-989-641-596-9.

Cortesia de Rd’Água/JDACT