sábado, 10 de fevereiro de 2018

Ambas as Mãos sobre o Corpo. Maria Teresa Horta. «Primeiro sinto o seu olhar preso no meu corpo, depois na minha cara. Por instinto ergo as mãos até à boca como para abafar um grito»

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O Silêncio
«(…) De olhos fechados, sentia dos outros os passos moles na areia. Encolhia-se por dentro até eles passarem e depois, com alívio, entreabria as pálpebras para vê-los já ao longe, quase sempre devagar a afastarem-se ainda e ainda, certamente até lá diante onde estavam as barracas, para aí se deixarem cair na sombra sob os toldos. E ela via-os através da neblina crispada do calor, uma espécie de hálito ou cortina. E logo era o silêncio: o silêncio côncavo do mar. A praia. Sentava-se inundada de sol, os olhos cerrados, encostava a cara aos joelhos erguidos e ficava assim sem pensar, numa dormência boa, anestesiada pelo calor. Os braços à volta das pernas eram um cordão bronzeado, brilhante de suar, e os cabelos, apanhados ao acaso e presos por ganchos ao alto da cabeça, escapavam-se e colavam-se-lhe ao pescoço, até mesmo à cara: húmidos, baços. Foi assim que a vi, olhei-a e tive a sensação nítida que adormecera. A pele do corpo era lisa, toda ela igualmente queimada pelo sol, sem manchas. A cara só então a descobriu, de súbito. Ainda mais devagar continuei pelo risco que o mar deixava na areia, um traço cravejado de pequenas pedras e conchas partidas, pequenos búzios e algas esgarçadas de um verde profundo. Olho-a: à medida que me aproximo atraso o passo, mais e mais. Com os braços em redor das pernas e o olhar vazio pregado no mar, parece antes uma estátua qualquer de qualquer fonte ou jardim, qualquer museu. Hesito. Há dias que hesito, acabando por continuar sempre sem nunca lhe falar. Naquela sua atitude ostensiva de fuga existe uma tal apatia que estremeço e irresistivelmente paro; hoje finalmente. Primeiro sinto o seu olhar preso no meu corpo, depois na minha cara. Por instinto ergo as mãos até à boca como para abafar um grito. Será o ódio que lhe obscurece de maneira tão singular a cor raiada da íris? (Sem mover um músculo, sem mostrar qualquer curiosidade, imóvel, ela olha-me.) Sim, é apenas o calor; como é apenas o calor que lhe faz descerrar os lábios quando à noite aparece no terraço do hotel, de ombros sempre nus, onde ele apoia o braço firme a roçar o amarelo esbatido do fato, ou quando na grande sala de jantar as mãos lhe tremem sobre a toalha branca. Imóvel; olho-a. Deixo as mãos sobre a boca e estremeço como se um súbito vento se tivesse levantado para me contornar o corpo. Sem nenhuma surpresa perante a minha atitude, ela deixa os olhos nos meus. O que talvez me apavore, o que me enche de uma vontade louca de gritar sem conseguir ir-me embora, nem de lhe contar o que afinal tenho de urgente para dizer, é a tamanha indiferença daquela mulher, a tamanha apatia. De olhos fixos, duros, nos seus, vê-a hirta, o grito suspenso agarrado pelos dedos. Contraída, espera que continue, que se afaste como os outros, mas à medida que o tempo passa compreende a diferença; retrai os dedos entrelaçados nos joelhos. Recorda-se agora perfeitamente: a mulher que à noite aparece no terraço, de vestido branco ou talvez amarelo muito claro, esbatido, os ombros sempre nus onde ele apoia o braço firme. O olhar vago não se lhe detém em nada e os dedos que lhe vê tremer neste momento sobre a boca tremem todas as noites sobre a toalha branca, ansiosos, quase enlouquecidos. Ou será o calor? A pergunta que faço, nauseada, enquanto ela me fixa, os braços à roda das pernas.

O Sono
Há na sua voz um acento febril. Às vezes apático mas febril. Encostada à balaustrada de pedra cinzenta, granitada, vejo-a de perfil, no seu vestido branco, leve, movido pela aragem morna que se levantou lá em baixo no jardim sobre o qual se debruça, encostando os quadris magros ao peitoril áspero, sem temperatura, somente grosso ao tacto e de um odor acre, sempre acre, em qualquer estação do ano. Demoro-me, já no terraço enorme. Demoro-me a vê-la mover-se no seu vestido negro quase transparente; a mover-se em redor da enorme figura de pedra, sem a olhar: uma mulher amparando nas duas mãos abertas os peitos nus, ofertados, firmes. Vejo-a..., é uma estátua como tantas lá em baixo no jardim, mas a única aqui, no terraço». In Maria Teresa Horta, Ambas as Mãos sobre o Corpo, Publicações Europa América, colecção Século XX, 1984, ISBN 978-972-100-090-2.

Cortesia de PEAmérica/JDACT