segunda-feira, 12 de fevereiro de 2018

O Segredo de Compostela. Alberto S. Santos. «Chamar-te-ás Prisciliano, em homenagem à tua mãe e aos sacrifícios que me causaste ao nascer!»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) A Villa Aseconia era herança de Lucídio, uma das muitas propriedades da família espalhadas pela Galécia. Após o casamento, o marido de Priscila mandara remodelar o quarto do casal, decorando-o com um belo conjunto de mosaicos que compunham uma formosa Vénus rodeada de um séquito de Nereides, por entre golfinhos, cavalos-marinhos e outros animais aquáticos. Lucídio Danígico Tácito fizera esta escolha pessoal em sinal de evocação da paixão com que Priscila o tocara. Mas, naquele momento, ninguém tinha tempo ou discernimento para apreciar a preciosa relíquia do talento hispano-romano. O nascimento de Prisciliano foi um acto sofrido quer para a mãe quer para o bebé. A criatura não tomou consciência do momento, não saberia nunca explicar os custos e as demoras por que passara desde que a sua frágil cabeça alcançou a luz e respirou pela primeira vez o ar quente do quarto materno, naquela manhã de tormenta. O desespero fora tanto como o de sua mãe. Um rosto choroso espreitou o mundo por debaixo da abertura do alto cadeirão. A parteira afanava-se nos trabalhos, porque o corpo era grande de mais para uma via tão estreita. Os gritos de ambos misturaram-se no ar, ultrapassaram portas, janelas e paredes, sobrepondo-se às pesadas bátegas da chuva, e ouviram-se nas várias dependências da villa. Os criados pararam os trabalhos. Uns reuniram-se em volta das lareiras, invocando os jovens Lares protectores da Villa Aseconia, outros espreitaram de novo os voos dos pássaros procurando adivinhar o destino, ao passo que os restantes o faziam perscrutando, seguindo a boa tradição augúrica, as vísceras de animais que, como exímios especialistas, tinham sempre à mão para as urgências. E era o caso. As mulheres refugiaram-se aos pés de um pequeno oratório, situado num recanto da zona onde viviam os colonos, para invocarem Juno Lucina, a deusa protectora da gravidez e do parto.
Mas não foi a um áugure, ou a qualquer dos ilustres habitantes do panteão romano, que Priscila recorreu no momento de todas as verdades. Salva-nos, Ísis, rainha dos céus! Ajuda-nos, ó mãe dos deuses! Num ímpeto final, expeliu a criatura acompanhada de um líquido transparente, matizado de sangue. A mãe, rasgada, derramava-se em lágrimas de alívio. Cá está! É um rapaz! Um rapagão, minha senhora! Valéria exibia o petiz, depois de o ter depositado no chão, inspeccionado detalhadamente, de o ter lavado e aconchegado numa manta de seda, enquanto Priscila recuperava das dores. Tomou-o, por fim, delicadamente, pelas mãos e amorou-o, sem pressa. A criança acalmara-se, entretanto, e abriu os olhos como que a adivinhar o mundo novo onde viera desaguar, sem o haver escolhido. Ao redor, as escravas encostavam-se às paredes, presas no momento. Só a chuva galaica carpia, lá fora. Os criados, informados do sucesso do parto, acenderam velas e receberam uma refeição reforçada como benesse pelos bons auspícios que ali se geraram. Os olhos da jovem mãe eram o espelho do seu mundo interior. Brilhavam de alegria, alívio e emoção. Mas, no íntimo, surtia-lhe uma névoa de preocupação que não conseguia discernir. Chamar-te-ás Prisciliano, em homenagem à tua mãe e aos sacrifícios que me causaste ao nascer!, sentenciou Priscila, cerimoniosa. Gaio Danígico Prisciliano. Apertou-o levemente contra o peito, deleitada». In Alberto S. Santos, O Segredo de Compostela, Porto Editora, 2013, ISBN 978-972-068-096-9.

Cortesia de PEditora/JDACT