sexta-feira, 2 de fevereiro de 2018

O Oficial Secreto. Catherine Jinks. «Consequentemente, movê-lo é uma questão de instantes, ainda que eu seja um homem pequeno e já não esteja na flor da idade»

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A inquisição (maldita) e os meandros da espionagem. 1321
«(…) Todavia, reconheci instantaneamente a voz de Anseim Guiraud, um dos cónegos, perguntar por mim. E quando o meu aprendiz respondeu que me iria chamar, outra voz emergiu: uma voz com um sotaque catalão. Diz ao teu senhor que ele deve vir imediatamente, sob pena de excomunhão, declarou a voz. Agrada-me dizer que as minhas capacidades ainda não desertaram por completo. Os meus membros moveram-se mais rapidamente do que os pensamentos, pelo que me apressei a trancar a porta que separa a cave da oficina. Um momento, se fizer favor!, declarei vivamente, enquanto procurava a carta do meu senhor. Por sorte, eu estava na mesma sala em que ela fica normalmente escondida e precisei unicamente de mover um barril e erguer a laje. Permita-me apenas que pendure esta pele!, disse eu. Ao olhar para aquele barril, alguém poderia perguntar-se se eu conseguiria chegar a erguê-lo sequer. Mas ele tinha sido construído com um fundo falso, bem alto e próximo da abertura; apesar de parecer estar cheio de água de cal, ele contém apenas a quantidade que um balde comportaria. Consequentemente, movê-lo é uma questão de instantes, ainda que eu seja um homem pequeno e já não esteja na flor da idade. O catalão ainda mal tinha proferido o seu protesto quando eu já estava a destrancar a porta, com a carta colocada em segurança por entre as roupas e o barril de volta à sua localização habitual.
Oh, disse o catalão, quando surgi à sua frente. És Helié Seguier, o fabricante de pergaminhos? Sou, foi a minha resposta. Então és esperado na Torre do Capitólio, declarou o catalão, que tinha sido em outros tempos negociante de velas, ou então tanoeiro, a julgar pelas pequenas marcas de queimaduras que tinha na face e nas mãos. Apercebi-me de mais cicatrizes, uma em cada pulso: cicatrizes de algemas. Já estou familiarizado com este tipo de marcas. Tão claras quanto qualquer inscrição feita num registo de sentenças, elas revelavam-me que o catalão era um núncio, ou mensageiro, ao serviço do seu anterior carcereiro. Tratava-se de um herege reformado transformado em lacaio inquisitorial. Mas eu era-lhe estranho. E estava grato por isso. Isto é uma carta de convocatória formal enviada pelo irmão Jean Beaune, o inquisidor de Carcassonne, explicou o cónego, estendendo-me um documento composto em latim. Uma vez que não sei ler latim, devolvia-a no mesmo instante. Como vês, ela traz o seu selo. Devias avisar a tua esposa e vir sem demora, disse o catalão, lançando um olhar para o meu aprendiz, que é apenas um rapaz.
Não tenho esposa. Ou filhos, rebati, antes de me virar para o jovem Martin. Devo confessar que ele parecia estar tão assustado quanto qualquer filho ficaria ao ver o seu pai ser preso. Porque eu tinha ganho a sua lealdade por meio de um expediente muito simples». In Catherine Jinks, O Oficial Secreto, Confissões de um espião do inquisidor, 2006, tradução de Tiago Marques, Bertrand Editora, Lisboa, 2007, ISBN 978-972-251-609-9.

Cortesia de BertrandE/JDACT