segunda-feira, 26 de fevereiro de 2018

A Cruz de Esmeraldas. Cristina de Torrão. «E eu não tenho medo do Juízo Final. Por Alá, o que estás para aí a dizer? Peço-te que te levantes!»

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«(…) Com uma tigela de açorda na mão e de rosto coberto por um véu azul-celeste, Aischa dirigia-se ao casebre de Abdalah, que ficava encostado à muralha, perto da bâb al-khawkha, a Porta situada nas imediações da muralha interior da alcáçova e que abria para o arrabalde ocidental. Abdalah cegara totalmente e sentia-se tão fraco, que raramente deixava o leito. Lá chegada, Aischa abriu a porta e entrou na única divisão do casebre de madeira. Vieste outra vez, meu anjo?, perguntou Abdalah do seu catre, estendendo-lhe as mãos, que ela afagou nas suas. Alá o Misericordioso manda um anjo alimentar-me! Deixa-me aquecer-te a açorda. Depois de se livrar do véu, a moça sentou-se num mocho em frente à lareira. Com uma tenaz, espalhou as brasas e pousou a tigela de barro sobre elas. O dia do Juízo Final aproxima-se, balbuciou Abdalah. Alá o Sublime vai julgar entre os vivos e os mortos. Eu estou preparado. Aischa arrepiou-se. Irei ao encontro de meu pai, prosseguiu o ancião, com um sorriso nos lábios. E juntos percorreremos as ruas da Qurtuba antiga, onde viviam os sábios e os ricos em ruas iluminadas durante toda a noite, onde se tecia seda com fios de ouro, onde se manufacturavam baixelas de ouro e prata...
Enquanto ele assim pairava e a açorda aquecia, os pensamentos de Aischa tornaram a concentrar-se na história que o irmão Rashid lhe tinha contado: no dia em que os cristãos descobriram a grande matmúrâ, um dos cruzados aproximara-se sozinho do esteiro, a fim de lavar as mãos e a cara! Rashid e os seus companheiros, por sobre as muralhas, nem queriam acreditar no que viam. Alguns estiveram mesmo prestes a disparar as suas setas. Mas a calma e a coragem que o maju demonstrara, acabara por lhe salvar a vida. Ninguém se atreveu a disparar sobre um homem mal armado e que, pelo menos naquela altura, não mostrara qualquer instinto agressivo. Limitaram-se a observá-lo. Ali ficou ele, dissera Rashid, momentos infinitos, com os olhos fixos na Porta Férrea, até a água da maré cheia lhe chegar aos joelhos. Os cabelos compridos brilhavam-lhe como ouro ao sol! Estas palavras teimavam em não sair da cabeça de Aischa. Perturbavam-na tanto, que chegou a sonhar que havia subido às muralhas e deparado com a figura do estrangeiro de cabelos de ouro e as pernas enfiadas na água. E mal acordou, vieram-lhe as palavras da mãe à ideia: irás pertencer a um cruzado e vós os dois devereis guardar a cruz...
O sibilar de gotas de açorda fervente caindo sobre as brasas tirou-a daquele torpor. Com a ajuda de um farrapo, pegou na tigela e, depois de pôr uma segunda almofada atrás das costas de Abdalah, sentou-se sobre o catre e ajudou-o a comer. Entre colheradas, ele continuava a balbuciar sobre o fim do mundo e o tribunal de Alá. A açorda já estava quase no fim, quando ela notou uma excitação fora do comum na cidade. Cobriu-se de novo com o véu, chegou-se à porta do casebre e viu guerreiros que se precipitavam sobre o lanço de escadas que, junto à bâb al-khawkha, conduzia ao adarve. Do lado de fora das muralhas, vindos do arrabalde, ouviam-se gritos. Seria um ataque dos cristãos? E o que haveria ela de fazer? Abrigar-se no casebre? A periclitante construção de madeira não oferecia grande protecção, o melhor era fugir dali. Mas..., deveria deixar Abdalah sozinho? Aproximou-se dele e perguntou-lhe: consegues levantar-te com a minha ajuda? Desconfio que os cristãos abriram as hostilidades e estarias mais seguro em minha casa. Viu perplexa que Abdalah sorria e não fazia o mínimo esforço para deixar a enxerga. A que é que achas graça?, inquiriu. Não temos nada a temer. Como não? Tu és um anjo descido dos céus. E eu não tenho medo do Juízo Final. Por Alá, o que estás para aí a dizer? Peço-te que te levantes! Puxava-o pelos braços, mas não adiantava. Sozinha, seria incapaz de o arrancar dali. Resolveu ir procurar ajuda e tornou a cobrir-se com o véu azul-celeste. Os soldados que enchiam as ruas não lhe prestavam atenção, tão ansiosos estavam em alcançar o adarve ocidental. Alguns deixavam mesmo os seus postos noutros pontos da cidade. Aischa sentiu uma curiosidade enorme de ir ver o que se passava, mas não se atrevia. O melhor era mesmo regressar a casa. Abdalah era conhecido em toda a cidade e, se corresse perigo no seu casebre, alguém haveria de... Aischa?! Deu meia-volta e, ao deparar com o seu noivo Amir, o coração disparou-se-lhe. Amir ficava tão garboso na sua cota de malha, de espada à cinta, o elmo com protecção nasal e a besta na mão. Ele era até conhecido pela sua pontaria. Amir estava ainda hesitante, pois o véu tapava a cara da moça: és mesmo tu Aischa? Que estás aqui a fazer? Pensei que as mulheres estivessem todas abrigadas em casa». In Cristina Torrão, A Cruz de Esmeraldas, Edição Ésquilo, 2009, ISBN 978-989-809-261-8.

Cortesia de Ésquilo/JDACT