segunda-feira, 12 de fevereiro de 2018

O Segredo de Compostela. Alberto S. Santos. «Em suma, dificilmente chegavam aos cofres do Estado os tributos que lhe eram devidos: ou porque não eram cobrados, ou porque eram previamente surripiados»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Esses cristãos serão a desgraça do império! Os cristãos e os impostos, Lucídio! Não sei o que é pior!, asseverou Sabino, enquanto se deliciava com uma fatia de presunto. Os cristãos são uma confraria fechada, com ares de superioridade. Mas os cobradores de impostos, esses não! Entram-nos pelas casas adentro, como se fosse tudo deles! Malditos cobradores de impostos!, afiançou Lucídio Danígico Tácito, tragando a terceira taça. Bom vinho este, hein?! Sabino sorriu e aproveitou para verter também a ânfora na sua taça de prata. Cultivo-o na Villa Marecus! Sabino era um eterno ufano das suas vinhas que produziam um néctar encorpado da cor dos rubis. E então: conta-me o que se passou com os tabularii. Acertei com eles os limites do cadastro da Villa Aseconia! Acreditas que queriam quase duplicá-los, para recolherem mais impostos?! Velhacos! Cuidado com essa gente! Muito cuidado! Ouvi dizer que torturam familiares e servos para lhes arrancarem falsas declarações contra os proprietários. Já me constou…, lastimou-se Lucídio. Ithacio, que veio de Roma com esse propósito, é capaz disso e muito mais! Lucídio e Sabino desfiavam o rol de lamentações que atormentavam os proprietários provinciais do império. À míngua de ofícios e comércio florescentes, tidos como actividades menores, os homens considerados eram os que viviam do produto da terra. E daí refugiarem-se frequentemente nos seus domínios, nas villae. Era o caso daqueles dois irmãos, ricos terra-tenentes, provenientes de uma família indígena galaica, cujas origens se perdiam até aos tempos em que Décimo Júnio Bruto irrompeu Galécia adentro, cruzando para sempre o rio do esquecimento.
Ithacio, de quem falavam, natural de Ossonoba, no sul da Lusitânia, viera em comissão de serviço da velha capital romana, nomeado curator civitas, o responsável pela arrecadação de impostos. Segundo constava, a sua fama quadrava com os males do império: corrupção e delacção. Probidade não era propriamente um valor que abundasse desde os confins do oriente até à Hispânia. Falava-se de desvios dos soldos no exército, exploração dos viajantes pelos administradores da posta, roubo de trigo pelos encarregados da anona, corrupção nos tribunais. E, claro, dos cobradores de impostos a aproveitarem-se dos contribuintes. Em suma, dificilmente chegavam aos cofres do Estado os tributos que lhe eram devidos: ou porque não eram cobrados, ou porque eram previamente surripiados por mãos ávidas do alheio. Mas, acima de tudo, Lucídio, cuidado com os delactores! Desde Tibério que esse mal nunca mais se exterminou no império. Parece que Ithacio tem vários espiões, e é muito sensível a acusações de magia e bruxaria. A sério?! Sim, e mesmo sem qualquer prova. Faz tudo para cair com toda a sua voracidade sobre a desgraçada vítima. Olha lá, não é por estes dias que Priscila te dará o primeiro filho?, perguntou Sabino, com a boca cheia. É verdade, Sabino! Eu nestas andanças e nem sei se já serei pai…, respondeu Lucídio, nublado de preocupação». In Alberto S. Santos, O Segredo de Compostela, Porto Editora, 2013, ISBN 978-972-068-096-9.

Cortesia de PEditora/JDACT