sexta-feira, 2 de fevereiro de 2018

O Manuscrito nos Confins do Mundo. Marcello Simoni. «Arde... O que é? Vinho. Utilizo-o para lavar as feridas. Agora que a ferida estava limpa, podia distinguir os contornos»

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O Signo do Sagitário. Paris, noite de 26 de Fevereiro
«(…) Lamento ter-vos assustado… Não sabendo o que responder, Suger examinou o seu rosto. As linhas de expressão podiam revelar muito sobre o estado de saúde, o temperamento e até o destino das pessoas. Aprendera aquela arte em rapazinho com um curandeiro judeu e desde então ela convertera-se numa pequena obsessão. O estrangeiro tinha traços nórdicos e aristocráticos, quase inofensivos. As rugas da testa denotavam uma têmpera robusta, de soldado, mas convergiam sobre o olho esquerdo formando uma espécie de cruz. Mau sinal, pensou. Era um prenúncio de morte violenta. O homem sorriu-lhe. Olhais-me como se fosse já cadáver. A forma como vos observo não é da vossa conta, rebateu o médico, hostil. Seguistes-me e entrastes na minha casa com prepotência. Agredir um magíster da Universitas é um acto grave, punido severamente! O indivíduo endireitou as costas, quase em resposta à ameaça de uma criança. Não temo a morte, mas a eventualidade de a minha empresa falir, revelou. Se tiver de perecer, é meu desejo que alguém a continue. Nesse caso, seria melhor terdes recorrido aos monges de Saint-Victor. Suger apontou-lhe a porta. Ainda estais a tempo. Não, sois a pessoa indicada. O homem levou a mão à testa, esforçando-se por se manter lúcido. Um laico, e ainda por cima... Eis a razão por que não hesitei em seguir-vos. Julguei que queríeis tratar-vos. Não só. Sou um peregrino numa terra estrangeira... Preciso de... Dobrou-se bruscamente, com um acesso de tosse. Suger pousou o pilão e ajudou-o a endireitar-se. Estais a delirar, senhor. Dais-vos conta disso? O homem estava nas últimas, cada vez mais pálido e a arder em febre. Devia ter esgotado as forças enquanto o perseguira. Não... A minha missão... Abanou a cabeça e abriu o saco que tinha no colo. É preciso que isto seja entregue a um camarada meu que se encontra na cidade de Milão..., e tossiu uma vez mais.
O médico deixou escapar uma pequena gargalhada nervosa. Até Milão? Sois louco? Levai-o vós, esse saco esfarrapado. Farei tudo para o conseguir, podeis acreditar... Mas temo não viver o suficiente... Suger interrompeu o discurso com um gesto impaciente. O homem, provavelmente devido à dor e à perda de sangue, devia sofrer de confusão mental. Mas também estava desesperado. Não temais, tranquilizou-o, seguindo a ética em prejuízo da prudência, e estendei-vos no chão de modo a que possa observar-vos. Na verdade devia tê-lo mandado deitar na sua cama, mas o homem estava imundo e ele odiava a porcaria. Se não for esta ferida a matar-me, gemeu o desconhecido, estendendo-se no chão, será o cavaleiro... Como já fez com o bom Wilfridus... Isso são coisas vossas, respondeu-lhe o médico. Inclinou-se para ele e afastou o manto, descobrindo uma túnica ensanguentada e queimada em vários sítios. Desatou o cinto, afastou o punhal e descobriu o tórax. Como previra, a ferida era do lado esquerdo, debaixo das costelas, uma grande laceração com quase três polegares e bastante profunda. A carne em volta emanava cheiro a enxofre. Ao que parece, procuraram assar-vos num espeto. Estou vivo por milagre, suspirou o homem. Tranquilizai-vos, ireis sobreviver. Suger pôs-se de pé, pegou num frasco de cerâmica que estava em cima da mesa e debruçou-se novamente sobre o paciente. Retirou a rolha com os dentes e derramou um líquido vermelho sobre a ferida, que depois enxugou com um pano. Arde... O que é? Vinho. Utilizo-o para lavar as feridas. Agora que a ferida estava limpa, podia distinguir os contornos. Não lhe pareceu de difícil tratamento; no entanto, tinha um aspecto insólito. Em volta da perfuração, a epiderme estava lacerada e queimada; e os tecidos internos encontravam-se no mesmo estado. A voz do desconhecido distraiu-o das suas reflexões: se fizerdes o que vos pedi, sereis devidamente recompensado... Recompensado?» In Marcello Simoni, O Manuscrito nos Confins do Mundo, 2013, Clube do Autor, Lisboa, 2014, ISBN 978-989-724-169-7.

Cortesia do CdoAutor/JDACT