«(…) Por fim, numa noite de Novembro,
exasperada, saí levando a caixa comigo. Não aguentava mais sentir Lila acima e
dentro de mim, mesmo agora que eu era muito estimada, mesmo agora que tinha uma
vida fora de Nápoles. Parei na ponte Solferino olhando as luzes filtradas por
uma neblina gélida. Apoiei a caixa no parapeito, empurrei-a devagar, devagar,
um pouco a cada vez, até que caiu no rio quase como se fosse ela, Lila em
pessoa, a se precipitar, com os seus pensamentos, as suas palavras, a maldade
com que restituía golpe após golpe a cada um, seu modo de apropriar-se de mim
como fazia com qualquer pessoa ou coisa ou evento ou sabedoria que se aproximasse:
os livros e os sapatos, a doçura e a violência, o casamento e a primeira noite
de núpcias, o retorno ao bairro no novo papel de senhora Raffaella Carracci.
Eu não conseguia acreditar que
Stefano, tão gentil, tão apaixonado, tivesse presenteado Marcello Solara com um
sinal da Lila criança, a marca de seus esforços nos sapatos que tinha
inventado. Esqueci Alfonso e Marisa conversando entre si com os olhos
brilhantes, sentados à mesa. Não dei mais atenção às risadas bêbadas de minha mãe.
A música murchou, a voz do cantor, os casais que dançavam, António, que saíra
ao terraço e, vencido pelo ciúme, parava além da vidraça, fixando a cidade violácea,
o mar. Até a imagem de Nino desbotou enquanto saía da sala como um arcanjo sem anunciação.
Agora eu via apenas Lila falando ansiosamente ao ouvido de Stefano, ela palidíssima
no no vestido de noiva, ele sem um sorriso, uma mancha esbranquiçada de incómodo
que descia da fronte aos olhos como uma máscara de Carnaval sobre o rosto
aceso. O que estava acontecendo? O que teria ocorrido? Minha amiga puxava para
si o braço do marido com ambas as mãos. Puxava com força, e eu, que a conhecia
a fundo, sentia que, se tivesse podido, ela o teria arrancado de seu corpo e
atravessado o salão carregando-o acima da cabeça, gotas de sangue sobre a
cauda, e se serviria dele como de uma clava ou mandíbula de asno para
arrebentar a cara de Marcello com um golpe certeiro. Ah, sim, ela teria feito
isso, e só de pensar o meu coração batia furioso, a garganta ressecava. Depois
extrairia os olhos dos dois homens, descolaria as suas carnes dos ossos da
face, os morderia.
Sim, sim, eu senti que queria,
queria que acontecesse. Fim do amor e daquela festa insuportável, nada de
afagos numa cama de Amalfi. Arrasar imediatamente qualquer coisa ou pessoa do
bairro, fazer um massacre, escaparmos eu e Lila, ir embora para longe, descendo
juntas com alegre desperdício todos os degraus da abjecção, sozinhas, em
cidades desconhecidas. Pareceu-me o justo resultado daquele dia. Se nada podia
nos salvar, nem o dinheiro, nem um corpo masculino, nem os estudos, tanto
melhor destruir tudo de uma vez. Em meu peito cresceu a raiva que era dela, uma
força minha e alheia que me encheu do prazer de perder-me. Desejei que aquela
força se expandisse. Mas me dei conta de que também estava amedrontada. Só em
seguida compreendi estar condenada a ser quietamente infeliz porque sou incapaz
de reacções violentas, porque as temo, prefiro ficar imóvel cultivando o
rancor. Lila, não. Quando deixou o seu lugar, ergueu-se com tal decisão que fez
a mesa tremer, os talheres nos pratos sujos, derrubando uma taça. Enquanto
Stefano se apressava mecanicamente em deter a língua de vinho que corria para o
vestido da senhora Solara, ela saiu a passos rápidos por uma porta secundária,
puxando a cauda cada vez que se enroscava». In Elena Ferrante, História do
Novo Nome, 2011, Relógio d’Água, 2015, ISBN 978-989-641-544-0.
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